quarta-feira, 10 de novembro de 2010

II Jornada de Psicoterapia Fenomenológico-Existencial

Um quinto dos vertebrados corre risco de extinção

A má notícia é que um número crescente de aves, anfíbios, répteis, peixes e mamíferos tem se aproximado da extinção. A boa notícia é que o número poderia ser pior, não fossem as medidas de conservação colocadas em prática em todo o mundo nas últimas décadas.
Na terça-feira (26/10), em Nagoia, no Japão, durante a 10ª Conferência das Partes (COP 10) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), foi divulgado o resultado de um grande estudo que procurou avaliar o estado atual dos vertebrados no planeta.
O trabalho foi feito por 174 cientistas de diversos países, entre os quais o Brasil. Os resultados foram publicados na edição on-line da Science e sairão em breve na edição impressa da revista.
Foram analisados dados de vertebrados, incluindo as mais de 25 mil espécies presentes na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). O problema é tão grande que o grupo afirma se tratar da sexta extinção em massa na história do mundo.
O estudo mostra que um quinto dessas espécies pode ser classificado como “ameaçado” e que o número tem aumentado. Em média, 52 espécies de mamíferos, aves e anfíbios se movem de categoria a cada ano, aproximando-se da extinção.
Do total de vertebrados existentes, 20% estão sob alguma forma de ameaça, incluindo 25% de todos os mamíferos, 13% das aves, 22% dos répteis, 41% dos anfíbios, 33% dos peixes cartilaginosos e 15% dos peixes com osso.
Nas regiões tropicais, especialmente no Sudeste Asiático, estão as maiores concentrações de animais ameaçados e, segundo o levantamento, a situação é particularmente séria para os anfíbios. A maior parte dos declínios é reversível, destacam, mas se nada for feito a extinção pode se tornar inevitável.
Os declínios poderiam ter sido 18% piores se não fossem as medidas de conservação da biodiversidade postas em prática. Esforços para lidar com espécies invasoras se mostraram mais eficientes do que as direcionadas a fatores como perdas de habitat ou caça, aponta o trabalho.
Os autores destacam a importância e a urgência das políticas públicas para conservação da biodiversidade. Segundo eles, decisões tomadas hoje poderão representar, daqui a 20 anos, uma diferença na área preservada das florestas atuais no mundo de cerca de 10 milhões de quilômetros quadrados – algo maior do que o tamanho do Brasil.

O artigo The Impact of Conservation on the Status of the World’s Vertebrates (doi:10.1126/science.1194442), de Michael Hoffmann e colegas, pode ser lido por assinantes da Science em www.sciencexpress.org.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

PD em modelagem de incêndios florestais com Bolsa da FAPESP

O Projeto Temático "Análise Física e Computacional de Incêndios Florestais no Brasil", apoiado pela FAPESP, tem uma vaga de Bolsa de Pós-Doutorado, para o período de dois anos.
O candidato escolhido fará parte de um grupo de pesquisa interdisciplinar que realiza trabalhos de modelagem que serão utilizados para melhor entender as características de queima de combustíveis florestais.
É esperado que o bolsista interaja com os membros do grupo e que produza artigos para apresentação em congressos e publicação em revistas científicas com rigorosa política editorial.
O Projeto Temático é coordenado pelo professor João Andrade de Carvalho Júnior, do Departamento de Energia da Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Candidatos devem enviar curriculum vitae, amostra de publicações representativas, declaração de uma página com interesses de pesquisa e nomes e contatos de três referências.
Os documentos deverão ser enviados em um único arquivo pdf para o professor Guenther Krieger Filho ( guenther@usp.br), no Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
O processo de seleção terá início no dia 1º de dezembro de 2010, mas a posição permanecerá aberta até que seja escolhido o bolsista.
A vaga está aberta a brasileiros e estrangeiros. O selecionado receberá Bolsa de Pós-Doutorado da FAPESP, no valor de R$ 5.028,90 mensais.

Outras vagas de Bolsas de Pós-Doutorado, em diversas áreas do conhecimento, estão no site FAPESP-Oportunidades, em http://www.oportunidades.fapesp.br/.


Fórum debate estudos do mar

Por Alex Sander Alcântara

“Apesar do grande potencial da costa brasileira, a pesquisa em biologia marinha e ecologia ambiental carece muito de estudos”, disse Maria José Soares Mendes Giannini, pró-reitora de Pesquisa da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e conselheira da FAPESP.
A declaração foi feita durante o 2º Fórum Internacional de Ciência Oceânica – Cooperação Internacional entre Instituições Francesas, realizado nos dias 25 e 26 na Reitoria da Unesp, na capital paulista.
O evento reuniu pesquisadores brasileiros e franceses para discutir a implantação do Instituto de Estudos Avançados do Mar – Um olhar para o pré-sal.
Os participantes apresentaram resultados de pesquisas e discutiram temas relacionados à biologia marinha, bioprospecção de algas e genômica marinha, entre outros aspectos ligados às ciências do mar.
“Vínhamos discutindo a criação de um instituto do mar em workshops anteriores, com o objetivo de levantar áreas de competência da Unesp. Com o anúncio da descoberta de petróleo no pré-sal, o instituto se tornou ainda mais importante”, disse Maria Giannini à Agência FAPESP.
O instituto terá uma área de 5 mil m² em São Vicente (SP) e reunirá mais de cem especialistas dos diversos campi da Unesp nas áreas de geologia, aquicultura, meio ambiente e ecologia, recursos naturais e pesca. Além dessas, serão incluídas duas novas áreas: uma ligada ao direito e legislação marinha e outra à gestão portuária.
Para o projeto do instituto, o Ministério da Ciência e Tecnologia, por meio de parceria com a Unesp, repassará recursos da ordem de R$ 25 milhões, destinados à aquisição de equipamentos para pesquisas. A Unesp deverá entrar com outros R$ 10 milhões.
O prédio central terá cinco andares e duas estruturas que servirão para as áreas de geologia e aquicultura. “A ideia é que até o fim do segundo semestre de 2011 essas duas partes estejam concluídas para poder receber os equipamentos”, disse a pró-reitora.
Os estudos em genômica serão beneficiados com a aquisição de uma plataforma de análise genética de alta capacidade, que processa automaticamente informações contidas nos genes. Também será adquirido um microscópio de força atômica, capaz de distinguir átomos de diferentes elementos químicos.
A Unesp anunciou também para 2011 a criação do curso de MBA em gestão portuária, a partir de um acordo com o programa Erasmus Mundus. “A ideia é criar um curso de pós-graduação stricto sensu em ciências do mar”, disse Wagner Vilegas, do Instituto de Química da Unesp de Araraquara, que coordenou a apresentação dos trabalhos no fórum.
“O primeiro fórum foi com pesquisadores alemães. Discutimos com eles principalmente a parte de geologia, recursos de gás, óleo e petróleo. Receberemos em novembro uma comitiva da Holanda para lançar oficialmente o curso em gestão portuária. Eles têm uma tradição forte nessa área”, disse. Outros encontros estão previstos.

Troca de experiências

Bernard Kloareg, diretor de pesquisa em biologia marinha do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França, apresentou um panorama da infraestrutura para pesquisa em biologia marinha no país e na Europa e falou sobre o potencial brasileiro na área.
“O Brasil tem um potencial muito grande em biologia marinha a ser explorado e conta com pesquisadores de alto nível, mas será preciso criar instrumentos para conectar essas pesquisas com as de outras regiões, como a Europa, que desenvolve pesquisas consistentes nessa área há quase dois séculos”, disse.
Kloareg ressaltou que alguns pontos do projeto do Instituto de Estudos Avançados do Mar precisavam ser melhor discutidos, como diferenciar melhor as áreas de biologia marinha e oceonografia. “Apesar de o projeto ser interdisciplinar, são áreas com atuações diferentes”, disse ao reconhecer que o projeto ainda está em fase de construção.
"É preciso reconhecer que ainda não se sabe qual o impacto que uma exploração a mais de seis mil metros de profundidade pode provocar no ecossistema. Por isso a necessidade de confluência entre os vários estudos", ressaltou Karine Olu, do Instituto Francês de Pesquisa para Exploração do Mar (Ifremer).
Segundo Vilegas, as observações feitas pelos franceses foram importantes, sobretudo, porque o projeto está em fase de formatação. “Eles têm uma infraestrutura muito boa e são referência mundial em biologia marinha. A experiência deles é muito importante para a Unesp na formatação do instituto”, disse.
No segundo dia do encontro, a comitiva realizou uma visita às futuras instalações do instituto, em São Vicente

BRINCAR E OBSERVAR, AÇÕES E ADMIRAÇÕES: Uma reflexão sobre o adulto construído na infância

Anésia Maria Costa Gilio


“A única coisa de que precisamos para nos tornar bons filósofos é a capacidade de nos admirarmos com as coisas” (Gaarder, 2000, p.22)
Este estudo se baseia em observações e reflexões sobre o fazer pedagógico na educação infantil. Ao contrário dos adultos, as crianças vivem constantes processos de admiração: “Para as crianças, o mundo – e tudo o que há nele - é uma coisa nova; algo que desperta a admiração. Nem todos os adultos vêem a coisa dessa forma. A maioria deles vivencia o mundo como uma coisa absolutamente normal” (Gaarder, 2000, p.30)
O sentimento de “normalidade” que se observa no mundo contemporâneo se associa a um estado de desesperança e desânimo. A história, segundo Kosik (1976), é dialética de liberdade e necessidade. (...) a liberdade é necessidade compreendida” (p.213). Porém, o individualismo hoje dificulta o exercício da liberdade de defender da necessidade que gera permanente contestação. Assim, o desânimo está na dificuldade de compreender a necessidade defendida mas não instituída. Segundo Boff (2000), muitos passam a acreditar que são eles incapazes de convencer ou de fazer-se compreender. “Outros perderam a própria fé na capacidade de regeneração do ser humano e de projeção de um futuro melhor. Vêem no ser humano mais a dimensão de demência do que de sapiência. Resignaram-se na amargura. Depois da vida há coisa pior do que perder o brilho da vida?” (p.20)
Perder o brilho da vida é deixar de admirar-se com as coisas, perder o sabor dos porquês, acomodar-se, alienar-se, aceitar passivamente o instituído, tomar o fenômeno como essência, não se surpreender com a descoberta e entusiasmo do outro.
Muitos professores se comportam dessa forma e não estão atentos à importância de se perceberem pesquisadores ou filósofos. Apenas reproduzem procedimentos, sem reflexões. Diante dos questionamentos das crianças, respondem objetivamente, sem formular hipóteses possíveis, na busca da construção do conhecimento. Não procuram saber o que outros professores realizam ou propõem. Já que a sociedade contemporânea é definida como a da comunicação, “a leitura do que outras pessoas pensaram pode nos ser útil quando precisamos construir nossa própria imagem do mundo e da vida” (Gaarder, 2000, p.25)
Por tudo isso questiono a burocratização do fazer pedagógico de alguns professores da educação infantil, que impede o admirar-se e o brincar com seus alunos, presos a simulácros de currículos que afastam as crianças da escola. A instituição de ensino foi transformada em um espaço de obediência, distante da realidade, da cumplicidade na responsabilidade de ensinar e aprender.
Compreender a realidade é algo essencial no ato de ensinar. Exige ações constantes de ver, ouvir e falar, que são movidas, segundo Madalena Freire (1993), pelo desejo de vida, que é contrário ao desejo de morte: “quando sonhamos com um espaço onde não existem conflitos, nem diferenças, nada em desequilíbrio, nada em movimento, processo, transformação; tudo jaz na perfeita e absoluta calmaria do homogêneo massificado”. (p.13)
O desejo de vida vai além da busca dos educadores em criar estratégias que possibilitem o aprendizado do aluno. Ele é um fazer político/crítico, de perceber a realidade social, econômica, cultural e histórica na qual o aluno está inserido. Esta percepção só é possível na constância do ver, ouvir e falar. São essas ações que possibilitam o conhecimento concreto da realidade posta e não aquela que a escola quer ver. Compreender a realidade e buscar formas de transformá-la é respeitar o aluno. “Em nome do respeito que devo aos alunos não tenho por que me omitir, por que ocultar a minha opção política, assumindo uma neutralidade que não existe. ” (Freire, 1997, p.79)
Vinculada ao exercício de desvelar a realidade está a forma com que se direciona o olhar, a ação, do ver. Não só com palavras acontece o diálogo. Crianças e adultos também se comunicam com posturas corporais - o corpo fala. Crianças são bons filósofos, admiram-se com transformações na postura do adulto. Fazem perguntas como: “Você está triste?...” A sensibilidade presente no olhar da criança se desfaz quando, esta, entra no mundo adulto. Os adultos precisam que amigos revelem que não estão bem. Não mais se admiram com as transformações. Daí a importância de adultos e professores, reeduquem seus olhares. Assim poderão compreender a realidade e buscar formas de transformá-la, respeitando o aluno, percebendo o não dito em seu discurso, mas declarado por seu corpo.
A partir destas reflexões e da necessidade de admirar-se sempre, priorizada neste estudo, reporto-me a autores que resgatam a história da infância no Brasil, a partir do século XIX. Isso possibilita uma maior compreensão do presente ou talvez a oportunidade de admirar-se com o passado desconhecido. Civiletti (1988), conta, que um certo fazendeiro do Maranhão inventou o tejupabo, “buraco cavado na terra onde a criança era colocada até a metade do corpo” (p.63) e a mãe era obrigada a deixá-la permanecer ali durante toda a jornada de trabalho. Esta autora chama a atenção para o papel secundário da criança nas famílias dos colonizadores, vista como mais uma pessoa a serviço do poder paterno. Um filho saudável e educado valia mais do que dois escravos, o que justificava que se investisse nele. Essas crianças, somadas ao número de serviçais do poder paterno, não dispunham do conhecimento instituído na sociedade da época, mas admiravam-se, imaginavam, brincavam.
Menezes (1977) narra fatos da vida de José de Alencar, que nasceu em 1º de maio de 1829, em Alagadiço Novo, pequena vila próxima a Fortaleza. “A criança, fraca nos primeiros tempos, alimentada com leite de cabra, é miúda e vivaz. Comanda, em breve, a legião de pequenos que brincavam, no terreiro, à sombra do oitão, com ossos de reses, que, na imaginação infantil, figuram como grandes boiadas, ou “sumia-se o dia inteiro, metia-se no mato...”. (p.28) Os ossos de reses, que se transformavam em grandes boiadas na imaginação da criança, mostram que independentemente do objeto, de sua forma, tamanho ou cor, marcam o lugar que a ela convém. Ações como essas, não se perderam no tempo, sempre fizeram e fazem parte do processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças. Nenhum adulto ensinou. As crianças criam na ação do brincar.
Castro Alves, conhecido como o “poeta dos escravos” nasceu em 14 de março de 1847, na Bahia. A ação de admirar-se na sua infância estava em ouvir a mucama Leopoldina contar “as lendas da África longínqua, enquanto escondiam com sua bondade a realidade sangrenta dos escravos na América.” (Menezes, 1977, p.26) A infância de Castro Alves foi feita de muitas outras admirações, como pelas lutas, traições, vinganças e histórias de amor, que marcaram tanto o momento histórico do país como a vida familiar do escritor. Na infância de Castro Alves há, também, a ação do brincar, como correr pelos quartos da casa, brincar, nos vários salões, “esconder-se nos armários fixos da sala de jantar, tomando cuidado para não quebrar os vasos de porcelana, não danificar a coleção de quadros do Sr. Alves, nem chutar as escarradeiras de louça dourada, subir à velha torre para contemplar o mar” (p.41) Nas férias, no sertão, mais admirações: “banhos de lagoa, frutas do mato, ninhos de pássaros e cavalgadas malucas à beira do rio, assustando as mulheres que se banhavam nuas e despreocupadas. (p. 36)
Ao reportar-me aos depoimentos que se seguem, dou um salto no resgate da história e chego ao ano de 1882, quando nasceu Monteiro Lobato, em 18 de abril, na cidade de Taubaté. Juca, como era chamado, era um menino quieto, brincava muito com suas duas irmãs mais novas. Costumavam brincar com bonecos de sabugo, segundo relata Cavalheiro (1962), “Tomavam sabugos de milho e os vestiam como se fossem bonecas. Ou então, chuchus, aos quais punham pernas de palitos, e assim eles ficavam sendo os “cavalos”, os “porquinhos”...As crianças, anotou o próprio Lobato, ‘desadoram os brinquedos que dizem tudo, preferindo os toscos onde a imaginação colabore. Entre um polichinelo e um sabugo, acabavam conservando o sabugo. É que este ora é um homem, ora uma mulher, ora é carro, ora é boi – e o polichinelo é sempre um raio de polichinelo’” ( p.7)
Continuando a busca da ação de admirar-se na infância, encontro Villa-Lobos, que nasceu em 1887. Segundo Barros (apud MEC/DAC/ Museu VILLA-LOBOS, 1972), seu pai, professor Villa-Lobos, recebia artistas e cientistas “que lá iam tocar e ouvir os melhores autores”(p.7). Quando estas reuniões eram destinadas à música, atraíam o menino, “ele, muito menino, às vezes, descia, pé ante pé, de camisa de dormir – (naquele tempo não se usava pijama) – e vinha esconder-se no escuro, em baixo da escada para ouvir”(p.7)
Entrando no século XX, mais exatamente em 1901, nasce Cecília Meireles, que deu o seguinte depoimento: “Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar”. , (Perez, 1971, p.54) No entanto, a infância de Cecília Meireles não foi triste. Peres resgata outra fala da escritora: “Se há uma pessoa que possa, a qualquer momento, arrancar da sua infância uma recordação maravilhosa, essa pessoa sou eu.” (p. 54)
Diz este autor, que nessas recordações estão: “visões ou sensações que vão de uma chuva ou de um céu estrelado à descoberta do eco (importantíssima a sua descoberta do eco), ou à percepção aguda de detalhes de paisagem – uma fruta, um bicho, um aroma. Nessa infância também tem muita importância as histórias ouvidas – folclore português açoriano, transmitido pela avó, mulher culta, muito mística, - folclore brasileiro ensinado pela pajem Pedrina. Folclore que a escritora amará e por cujo estudo se interessará profundamente”. (p.54)
O silêncio e a solidão possibilitaram a Cecília Meireles, o admirar-se com as coisas simples a sua volta, descobertas repletas de encantamentos que vivem as crianças e comuns para os adultos.
Em 1904, no bairro do Méier, Estado do Rio de Janeiro, nasceu o educador brasileiro, Paschoal Lemme. Em suas memórias (1988), busco as alegrias das crianças, jogos e brincadeiras que se intensificavam no mês de junho. Resgato o que acontecia no período de 1906 a 1912, ou melhor, dos 2 aos 8 anos de idade, de Paschoal Lemme. Os pais tinham muitas atribuições o que dificultava os passeios ou “lazeres externos”. Os jogos de “pega-pega” aconteciam dentro de casa, provocando alguns acidentes. Para as crianças daquela época, as festas juninas eram mais importantes do que o Natal, festa religiosa, e o Carnaval, festa para adultos. Era o mês das férias escolares e as festas juninas “empolgavam” adultos e crianças. Era costume fazer fogueiras e barraquinhas nos quintais e nas ruas e balões.
“O céu ficava literalmente crivado de pontos luminosos, numa féerie deslumbrante; as correrias pelas ruas, os magotes de crianças e adultos, armados de paus e pedras para “tascar” os que desciam e se apagavam. Freqüentemente, estalavam conflitos de conseqüências bastante graves entre os “tascadores” dos balões. Nas manhãs frias e orvalhadas de junho, saía-se à procura dos balões apagados, caídos durante a noite, e, vitoriosamente, trazia-se para casa aquele acervo de papel colorido, amarfanhado, molhado pelo orvalho, enegrecido por dentro, pela fuligem do querosene.” (Paschoal Lemme, 1988 v1,p.30)
Um fato marcou de admiração a infância de Paschoal Lemme: em 1908, com a comemoração do centenário da abertura dos portos pelo príncipe D. João, surgiu no céu um balão “do tipo “Bleriot” emocionando a criança com quatro anos que observava da janela as evoluções do aparelho. Em 1910, com seis anos, admirou-se com o céu e a terra. No céu via o cometa Halley que fazia sua aparição e na terra ouvia a revolta da Marinha de Guerra. Em razão da distância de sua residência do centro onde aconteceram os conflitos, só há referências de tiros de canhões que atingiram a cidade, disparados pelos navios rebelados.
Diferente da infância movimentada de Paschoal Lemme, sempre em grupos, com festas juninas, balões e barraquinhas, pregões, brinquedos cíclicos e cometa, foi a infância de Adalgisa Nery, escritora brasileira que nasceu no ano seguinte,1905. Segundo Perez (1971), ela era de família desfavorecida economicamente, o que impossibilitava a compra de brinquedos e não tinha companheiros para brincar. Assim, caminhava pela casa questionando e buscando justificativas para os nomes dos objetos. Aos quatro anos, já dava mostras de sua sensibilidade poética, na ação de admirar-se: “aproximando-se de duas árvores que ladeavam a entrada da casa - um pé de magnólia e um de cravo-da-índia - aspirava intensamente os odores penetrantes – e, verificando não ser observada – estendia-se no chão entre os troncos e aguardava o acontecimento: sua transformação em árvore. Queria ser árvore e ali, imobilizada, acreditava que o milagre se processaria.” (p.3)
A infância comportada de Adalgisa Nery é quase oposta à infância de Vinicius de Moraes, que nasceu em 1913, na Gávea, Rio de Janeiro, um menino travesso, que já nasceu em meio à boemia e à poesia. O Embaixador da Canção, como ficou conhecido, ganhou de seu pai, que se aventurava em buscas de fortunas rápidas, um soneto, comemorando seu nascimento, mesmo antes que isso acontecesse. Vinicius de Moraes foi uma criança “inquieta” e “endiabrada”, que construía estória cheias de aventuras e heroísmos.
Depois de muito brincar no quintal, entrava na biblioteca do pai, “para mergulhar em outros mundos” e integrar-se no futuro no mundo da poesia. “Para Vinicius, os versos de uma canção não conseguiam se sustentar sem a melodia perdiam o sentido. Da mesma maneira, ele achava que uma música podia asfixiar um poema, que não precisava de mais nada além das palavras. Mas, em seu caso tanto a letra da música quanto o verso literário vertiam da mesma mina. (MPB Compoitores, 1997, p.4)
No ano seguinte ao nascimento de Vinicius de Morais, em 1914, nasceu Dorival Caymmi. Este se recorda que cresceu “em meio a mestiçagem, ao sincretismo religioso e à miscelânea cultural. E é claro, em meio à música”(MPB compositores, 1996, p.2) Essas vivências são marcantes nas composições de Caymmi, mas, é o mar que tem maior destaque em toda a sua obra. Uma admiração vivida na infância que influenciou a obra de um poeta. “Eu queria ver o mar. Subi num monturo para alcançar o muro. Cortei o pé num caco de vidro”(p.3) Ele viu o mar e passou a conviver neste cenário, observando e conversando com pescadores. Transformou tudo isso em canções.
Ao refletir sobre a transformação do brincar e do admirar-se em ação real, reporto-me a um outro educador, Paulo Freire que nasceu em 19 de setembro de 1921, no bairro Casa Amarela, em Recife, Pernambuco. Freire referiu-se inúmeras vezes ao brincar que mais lhe causou admiração. Aprender a ler e escrever, com gravetos sendo usados para riscar a terra. “Minha alfabetização não me foi nada enfadonha, porque partiu de palavras e frases ligadas à minha realidade, escritas com gravetos no chão de terra do quintal” (Freire, apud Gadotti, 1997, p.31)
Anos se passaram desde a década de 20, quando Freire, já alfabetizado, entrou para a escola regular com seis anos de idade, época de boas recordações, junto à professora Eunice Vasconcelos, que lhe propunha que escrevesse muitas palavras que conhecia e depois formasse sentenças. Quando em 1994, sete décadas depois, em companhia de Adriano Nogueira e outros educadores em um encontro informal, formulou a definição da verdadeira pedagogia, que destaco a seguir: “A verdadeira pedagogia é a arte de fazer da curiosidade algo metódico e permanente. É assim que o ser humano conhece e se reconhece. É importante aprender a aprender para que nossas aulas não se transformem em velhas e enfadonhas lições”. (Freire in Nogueira, 1994, p. 13)
Em minha leitura, a ação de admirar-se em Freire, está no conhecer e se reconhecer. Essa marca da infância delineou toda a sua trajetória de educador. O respeito dado ao que conhecia, facilitou reconhecer-se como um sujeito com amorosidade suficiente, para propor a educadores que partam do conhecimento de seus alunos, para que estes possam se reconhecer no espaço cultural, social e político do país.
Lygia Fagundes Telles, que nasceu dois anos depois de Freire, em 1923, admirou-se durante o brincar. Segundo Perez (1971), com cinco anos de idade, ia à igreja, toda tarde, a fim de pegar cera para fazer bonecos. Em uma dessas tardes encontrou no centro da igreja, um homem morto em um caixão. Fugiu assustada para casa e as primeiras explicações lhe foram dadas pela empregada. Sua questão era se ela também ficaria como aquele homem. Mais tarde, seu pai deu novas explicações, mas a impressão inicial não se desfez. Na obra desta escritora, a morte tem presença marcante.
Lucia Maria da Costa Campos, professora da Rede Pública de Ensino do Município de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, nasceu em 1942, no Município de Santo Antônio de Pádua (RJ). Em sua infância o que mais lhe causou admiração foram as ações solidárias realizadas por seu pai, o advogado Leonel Homem da Costa, secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro na década de 50.
“Meu pai se preocupava em ajudar as pessoas, economicamente desfavorecidas, com seus documentos, possibilitando o exercício da cidadania. Eu percebia o quanto era importante, para essas pessoas que desconheciam a necessidade de cumprir com as obrigações civis, ter estes documentos. Isso possibilitava mais fácil acesso à educação, à saúde e ao mercado de trabalho”.
Após 15 anos de trabalho na Rede Pública, Lúcia Maria voltou a estudar, fazendo o Curso Normal Superior no Centro Universitário Plinio Leite. Em seu trabalho monográfico de conclusão do Curso, “De volta à escola: uma evolução da nossa sociedade”, ela discute a reintegração daqueles que abandonaram a escola por inúmeros motivos e que retornam anos depois na busca de certificados, uma alternativa para não serem colocados à margem da sociedade.
Maria do Carmo Maiolino Pinto, professora da Rede Particular de Ensino do Município de Niterói, nasceu em 1957, nesta cidade. Como Lúcia, ela fez o Curso Normal Superior no Centro Universitário Plinio Leite. Seu trabalho monográfico de conclusão de curso intitulou-se “ A importância da ação de ler”
“Mesmo desconhecendo os códigos alfabéticos, sempre lia estórias através dos olhos de meus pais, ou seja, o hábito de ouvir e contar estória estavam presentes em minha família. Nesses momentos dedicados às estórias, existia o que hoje defino como a ação de projetar o futuro, que acontecia da seguinte forma: não tínhamos carro e nem tampouco possibilidades de adquirir um naquela época. Meu pai, então, inventava estórias que no presente, contavam o futuro. –‘ Já temos nosso carro, vamos sair para um passeio... ’. Todos sentados no sofá. Assim, meu pai dirigia o carro, e narrava tudo que estávamos vendo no decorrer da viagem. Assim chegávamos e nos divertíamos nos mais diversos lugares. As estórias acabavam quando retornávamos da viagem para casa. (Pinto, 2001, p.9)
O brincar na infância da autora era uma ação familiar. Liam o mesmo texto cuja ilustração estava no significado dado por cada um dos envolvidos, acionando a imaginação. Esse movimento, uma brincadeira, fez da autora um sujeito leitor, que tenta mostrar aos sujeitos à sua volta a importância dessa ação.
Esses rápidos relatos sobre personagens do cenário brasileiro me possibilitaram um exercício reflexivo sobre o brincar e o observar, entendidos como ações e admirações, vividas por crianças até os oito anos de idade. Partindo desses pressupostos, cabe a pergunta: é a infância do sujeito que determina sua vida adulta?
Este estudo, entendido como uma amostragem, porque, me refiro à infância de apenas 13 (treze) brasileiros, direciona minha resposta para o sim. Percebendo essa hipótese como verdadeira, urgente se faz um olhar mais atento para a infância, mais precisamente, para a educação infantil.
Hoje o brincar já não acontece na rua e sim em casa e na escola. Os que se dedicam à educação infantil estão atentos para a ação de admirar-se de seus alunos?
O brinquedo e a brincadeira fazem parte da história de vida dos brasileiros citados e de muitos outros. Segundo Leal (1982), jogos e brincadeiras são e devem ser sempre o ponto de partida. “A brincadeira é a principal manifestação da criança e deve ser levada em conta não só nas classes de alfabetização, mas em todas as séries iniciais. As crianças faveladas, particularmente, articulam todo o seu universo, os seus desejos, a sua sexualidade, o seu desespero, a vida e a morte em brincadeiras coletivas.” (p.11) Investigando os tipos de brincadeiras, Leal relata: “Encontrei quase vinte maneiras diferentes de pular carniça, inúmeras formas de brincar de esconder, de correr, de “colar”, de polícia e ladrão, de vivo-morto etc. Observei que, sozinhos no mundo (crianças da favela), esses seres, essas crianças, eram capazes de se combinar e de seguir regras comuns. Na escola, porém, ficavam inteiramente tolhidas, sem iniciativa, e suas brincadeiras eram sempre caóticas e sob a censura ou olhar do professor, perdiam a espontaneidade.” (Leal, 1982, p.11/12)
Muitas são as situações em que sujeitos se admiram. As resgatadas neste estudo foram positivas. Esta afirmativa é entendida como possibilidades de uma vida de realizações. Várias outras admirações, entretanto, marcam o cotidiano infantil, de forma negativa a seu bem estar físico e social. A pressa e o excesso de compromissos do mundo contemporâneo ajudam a criar entre o adulto e a criança uma relação vertical e autoritária, que também produzem admirações, sejam positivas ou negativas.
A educação não é a solução para os problemas políticos, econômicos e sociais vividos no contexto nacional, mas não existe solução sem ela. Neste momento, é necessária maior atenção para a formação do educador que atua ou atuará nos primeiros anos de escolaridade. Contratam-se professores não habilitados, por ser economicamente mais viável, “já que é SÓ para brincar com as crianças”. Infelizmente, essa postura é comum entre donos de escolas, pais ou responsáveis pelas crianças na faixa etária da educação infantil. Muitos dizem: “para brincar, qualquer escola serve.”
Entender que a escola é o espaço de proporcionar à criança a oportunidade de se constituir enquanto sujeito social e cultural, respeitando a individualidade e a diversidade é fundamental para se trabalhar a admiração. Incentivado a desenvolver o desejo de ser, que se constitua neste espaço o desejo de vida proposto por Madalena Freire (1993): uma constante busca de se conhecer e conhecer o outro, mesmo que para isso seja necessário muito barulho, risos, brincadeiras, felicidade.
Afirma-se no senso comum que crianças precisam ser “podadas” para que o adulto não perca o controle sobre ela. Nega-se a ela o direito de ser, antes mesmo de aprenderem que podem ser. Ainda segundo Madalena Freire (1993),“somos sujeitos porque desejamos, sonhamos, imaginamos e criamos; na busca permanente da alegria, da esperança, do fortalecimento da liberdade, de uma sociedade mais justa, da felicidade que todos temos direito” (p.14)
É, então, a infância do sujeito que determina sua vida adulta? Esta investigação continua. Para Bakhtin (1997), existem três valores biográficos que podem ser percebidos na consciência. Esses valores são estéticos para o sujeito e podem organizar sua representação da vida: a vontade de ter importância no mundo dos outros, a vontade de ser amado e a vontade de viver a diversidade da vida interior e exterior.
A vontade de ter importância no mundo dos outros, é a aspiração de glória que organiza a vida. “Aspirar à glória é ter consciência de pertencer à história da humanidade cultural, é validar e construir sua vida na consciência que se pode ter dessa humanidade, é crescer e engrandecer no outro e para o outro, e não em si mesmo e para si mesmo, é ocupar no mundo um lugar muito próximo dos contemporâneos e dos descendentes” (p.170)
Bakhtin (1997), complementa que o futuro tem, então, uma função organizadora, para aquele que sabe o que deseja, que visualiza este futuro, assim sendo o sujeito organiza o viver do presente em função do futuro.“Não se trata, porém, do futuro absoluto do sentido, mas do futuro (o amanhã) temporal, histórico, aquele que não nega, mas prolonga organicamente o presente. (...) A percepção orgânica de si mesmo integrado à história da humanidade heroificada, da qual o indivíduo participa, na qual se engrandece, através da qual pensará seus trabalhos e seus dias...” (p.170/171)
Estes movimentos sustentam também os outros dois valores citados, a vontade de ser amado e a vontade de viver a diversidade da vida interior e exterior.
Sobre a vontade de ser amado, diz este autor: “O desejo de ser amado, a consciência, a visão e a forma que se pode ter na consciência amorosa do outro, a vontade de fazer desse amor almejado do outro a força organizadora e motriz da vida, tudo isso é ainda uma maneira de crescer e se engrandecer no clima da consciência amorosa do outro (...) o amor determina-lhes a tensão emocional na medida em que pensa e condensa os detalhes internos e externos dessa vida.”(p.171)
O sujeito, então se preocupa com seus aspectos externos, como o modo de vestir-se, sua aparência, para merecer o amor do outro.
A vontade de viver a diversidade da vida interior e exterior, é apontada por este autor como a alegria de viver, o que não é sinônimo de vitalidade biológica. Vai além disso: é quando o viver é percebido como valor.
Partindo destes pressupostos, percebendo-me pesquisador, sujeito a inquietações diante do percebido, apresento minha hipótese:
A criança admira-se com coisas simples, que para o adulto são sem importância. A ação de admirar-se provoca o movimento de conhecer, de se perceber integrada no social. No convívio social, admira-se com personagens que se destacam como heróis biográficos, ou seja, aqueles que de alguma forma também provocam a admiração no adulto. O desejo de ocupar este lugar organiza a narrativa de sua vida, “o futuro, o amanhã, temporal, histórico aquele que não nega, mas prolonga organicamente o presente”. Em síntese, a admiração vivida na infância, aciona o futuro, que passa a organizar o presente. É, portanto, a educação infantil o tempo de admirar-se, a escola deve, então, ser um espaço de admirações. Assim fazendo, educadores estarão possibilitando às crianças a oportunidade de conhecer diferentes heróis biográficos.

Referências Bibliográficas

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Artigo publicado na Revista Pedagógica . v.9 . Nº 53. set/out. 2003 . Belo Horizonte MG, editora Dimensão.








segunda-feira, 8 de novembro de 2010

As “terceiras intenções” - ideologias - que marcaram e marcam a educação brasileira

 Anésia Maria Costa Gilio

O presente texto corresponde a um capítulo de minha dissertação de mestrado em educação, na Universidade Federal Fluminense UFF, intitulada “Pra que usar de tanta educação para destilar terceiras intenções?” Jovens, Canções e Escola em questão. Este questionamento tomei por empréstimo de Cazuza, na canção “Codinome Beija-Flor”, que, como muitas outras de suas composições, fez grande sucesso na década de 80. Transformei-o em metáfora do meu trabalho – um entre tantos questionamentos que podem ser levantados em relação à instituição escolar.
Muitas foram as reflexões que antecederam este trabalho de pesquisa, tais como as múltiplas formas de expressão dos sentimentos, pensamentos e ações de cada ser humano, determinando suas individualidades, em função da sua visão do mundo. Estamos todos atentos a essa multiplicidade de individualidades no mundo? A escola está atenta?
Além da escola ignorar os estudantes como portadores de memória social e tudo o mais que essa dominação acarreta, ainda são as questões administrativas e os simu lacros curriculares com conteúdos fragmentados, descontextualizados e sempre fiéis ao livro didático, que mais tempo ocupam da formação dos professores. O que, então, está sendo feito para ampliar o tempo das discussões, com esses professores em formação, sobre questões sociais, políticas e éticas que compõem o currículo em seu sentido pleno?
O que é possível fazer se ao professor está sendo negada a condição de intelectual envolvido na tarefa de educar? Existe dicotomia entre a situação do professor e a do aluno? Que professor o jovem quer? Qual, então, é a leitura do jovem estudante sobre a escolarização? Como, então, o jovem reage a tais situações? Como se vê, e vê o outro, seu igual, nos demais grupos sociais em que está inserido? Tais questionamentos surgem em função do que os jornais insistem em mostrar, que muitos jovens estão prostituindo-se, drogando-se, traficando ou pichando. A grande maioria, porém, está buscando realização emocional e profissional - os jornais referem-se a estes? Como, então, os citados nos jornais e os que encontram equilíbrio para alcançar seus objetivos de vida, podem encontrar, na escola, espaço para discutir suas questões? O que é preciso ser feito?
A escola tem a seu dispor a música que está presente no cotidiano. É um recurso simples, dinâmico, contextualizado. É a realidade do jovem entrando na escola. Uma maneira simples de aprender, mas, de forma alguma, se tornará simplista. É uma perspectiva de estudo que poderá ajudar nessa proposta de organização do diálogo entre as disciplinas e fora delas.
Após este exercício reflexivo, delimitei a questão central deste estudo: O que os jovens expressam, por meio da linguagem musical, a outros jovens e que a escola, ensurdecida por inúmeras intenções, parece não entender?
O objetivo da análise proposta foi revelar, para o campo da educação, as intenções dos jovens, com intuito de contribuir “na luta entre o dizer e o fazer em que nos devemos engajar para diminuir a distância entre eles, tanto é possível refazer o dizer para adequá-lo ao fazer quanto mudar o fazer para ajustá-lo ao dizer” (Freire, 1998, p. 91). Assim será possível diminuir a distância entre o que o jovem está produzindo fora da escola e o que se trabalha nela.
Dei, então, mais um passo, buscando sustentação teórica para a proposta da música como uma estratégia pacífica para a cura do ensurdecimento da escola. Entendendo, que esta é o que o professor resolve propor a seus alunos, a partir de uma reflexão sua, independente de qual tenha sido a motivação, mas que de alguma maneira tenha tocado sua emoção. Assim, quando apresentar sua idéia aos estudantes, estará acreditando nela. Não estará copiando algo que deve ser seguido, como os conhecidos simulacros de currículos. Nem estará fazendo o que “achou” bonito o outro fazer. Estará, sim, confiante, esperançoso e bem humorado, carregado de elementos fundamentais para envolver o outro em um diálogo horizontal. Estará, portanto, trabalhando o currículo em seu sentido pleno, seja qual for o recurso usado. Eu propus a música por acreditar que ela está impregnada de questões políticas e sociais, presentes no cotidiano de alunos e professores, abordando temas fundamentais no processo ensino - aprendizagem.
Procurei, também e principalmente, destacar teoricamente As “terceiras intenções” - ideologias - que marcaram e marcam a educação brasileira, capítulo destacado neste texto, como também a linguagem, contextualizada ou não, sua função e ação.
Discutir educação, sem abordar as “terceiras intenções” que permeiam a ação de educar, seria fazer uma abordagem superficial. Posto isso, é necessário entender quais são essas “terceiras intenções”, as várias ideologias, que norteiam o processo histórico da educação brasileira. Antes, entretanto, é preciso apresentar uma explicação preliminar: a educação é aqui entendida como uma prática social, que se processa historicamente, com características e regência de um sistema econômico-social básico. “Mais do que outras instituições sociais, a educação parece estar ancorada a meio caminho entre dois pontos de referência necessariamente ideológicos.” Os que procuram por ela e os que detêm o poder sobre ela. Esta afirmativa foi feita por Ramalho (1976, p. 15), estudo em que busco subsídios para os esclarecimentos que proponho como introdutórios, ao caminhar histórico da educação brasileira e as “terceiras intenções”, que aponto como causas do ensurdecimento da escola.
Sendo, então, a escola, como disse Ramalho (1976), uma instituição ancorada em dois pontos de referência necessariamente ideológicos, cabe nesse momento, apresentá-los: de um lado, ela é um produto da ideologia de seus promotores - o autor chama a atenção de que isso não significa que esses agentes tenham clareza disso. Do outro lado, está o papel que representa como uma instância de sistematização de ideologia. Isso significa que a instituição escolar é um instrumento ideológico para os que detêm o poder de ditar normas a serem seguidas, como também para aqueles que recorrem a ela, buscando soluções para um dia dispor também do poder.
Sobre o termo, ideologia, o autor faz um alerta de fundamental importância: “A ideologia não pode ser compreendida como uma produção meramente conceptual, teórica e intencionalmente livre das práticas econômica e social de seus agentes. Para cada uma delas, a ideologia se confunde com a própria experiência concreta e a traduz, explicando, em última instância, a própria sociedade, do ponto de vista desta experiência.” (Ramalho, 1976, p. 18)
Tais explicações são necessárias pela facilidade com que se define ideologia como sendo um conjunto de conhecimentos ou representações, com que se explica a realidade. Esse conjunto são as legitimações sociais ou produções sociais de classes ou grupos, com interesses concretos, repletos de significados, valores e normas, correspondentes às instituições a que estão ligados. Mesmo que muitos dos que se servem dessa ou daquela ideologia não tenham sempre clareza das intenções dela. Esse é o problema da intencionalidade de significação na produção da ideologia.
Ramalho (1976), diz que a ideologia parece possuir duas funções básicas, para cada uma das classes sociais: “-produzir legitimações sociais organizadas em um modelo capaz de orientar a conduta de agentes de classe social, tanto numa dimensão intraclasse como em dimensões interclasses; -produzir uma explicação das instituições sociais e dela própria, como um todo, reconstruindo, como representação, os seus princípios de articulação, desde o ponto de vista específico e concreto das condições- relações da classe.” (p. 19)
Diz, ainda, o autor que é justamente a coerência dessas funções que possibilitam à ideologia, ocultar e transcender. São essas condutas que melhor traduzem a eficácia e a falácia da ideologia.
Assim como o homem diferencia regiões institucionais de articulação em suas relações com a natureza e com o social, também na esfera da ideologia é possível diferenciar-se regiões ideológicas, com relativa autonomia, como, por exemplo, a ético-religiosa. As regiões ideológicas existem no interior de uma ideologia. A ideologia que legitima uma sociedade é aquela que a classe dominante produz, julgando-se guardiã da verdade.
Ramalho (1976), faz um rápido resgate histórico das sociedades. Nele, delimita a função ideológica do sistema capitalista, comparando-o com outras sociedades. “Fazendo-se uma rápida análise histórica, poder-se-ia observar que, numa sociedade escravagista, a diferença entre as classes sociais é dada como natural. Na formação social feudal essa diferença é dada como sagrada e na formação capitalista, ela é oculta, ou seja, dada como inexistente; ou melhor, é diluida em ex-plicações que retiram da diferença o seu núcleo de antagonismo. A função da ideologia dominante nesta formação social é princi-palmente ocultar, mais do que negar, as relações antagônicas entre classes.” (Ramalho, 1976, p. 23)
Nessa sociedade, o indivíduo é protegido pelo Estado, que funciona como seu tutor. O tutor é aquele que detêm o poder de dar o necessário a todos, inclusive a responsabilidade de seus fracassos. A essa questão, na educação, darei um destaque maior, quando discutir os estudos de Soares (1991).O autor conclui essa parte de seu estudo com uma afirmativa da qual compartilho e que ampliarei a seguir. Diz ele que “é impossível tratar a prática educativa dissociada das ideologias presentes na sociedade” (Ramalho, 1976, p. 26)
Existe, portanto, grande diferença entre o saber que a escola afirma buscar construir e a ideologia que institui o fazer e o agir dessa instituição. A educação, portanto, se dá ancorada a meio caminho entre dois pontos, como afirmou Ramalho (1976).
O que é instituído, em qualquer espaço institucional, é para ser seguido e obedecido. Não precisa ser questionado. Não necessita ser analisado. Não se transforma em saber. São seguidos princípios organizatórios, não explícitos, que regulam as relações. Sendo assim, inicio uma trajetória para buscar maior base teórica para compreender o espaço em que essas idéias, que assumem força de conhecimento, estão inseridas: a instituição escolar.
Paulo Freire (1997) afirma que: “ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica”. Partindo desta afirmativa, Freire (p. 149), diz que: “a realidade dos fatos é diretamente ocultada pela ideologia, que faz uso da linguagem para construir uma névoa que nos faz míopes”. Acredito também que a ideologia dá a essa linguagem uma intensidade de coerência, que provoca o ensurdecimento da escola.
Freire (1997) propõe a morte dessas ideologias que ocultam os fatos. Para que tal proeza seja possível, o autor diz ser importante que se tenha, também, um discurso ideológico que as faça míopes. Pois, fazendo uso dos mesmos recursos, talvez, consigamos fazer com que não percebam que falamos de suas mortes, quando diz: “O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos” ( p.149).
O autor alerta, ainda, os educadores para a única postura que os impulsionará a se resguardarem das “artimanhas das ideologias”, propondo que jamais se fechem em suas verdades, excluindo o outro de suas reflexões. É o exercício crítico de resistir ao que é determinado pelo poder que gera qualidades que se transformam em sabedorias fundamentais à prática docente. Para que esse exercício seja possível é importante que o educador não deixe de viver sua liberdade e responsabilidade perante o outro e o mundo, experimentando-se como ser cultural e histórico, portanto inacabado, e ciente desse inacabamento. Segundo Freire, “na verdade o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital” (Freire, 1997, p. 55). Partindo desses pressupostos, cabe ao educador uma ação de entender-se como sujeito do processo e manter um diálogo com seu interior para romper com medos e angústias, principalmente diante da dificuldade de compreender as contradições observadas na realidade social, provocado pelo obscurecimento que o discurso ideológico faz vigorar.
A proposta de que o educador não se feche em suas verdades; de que faça do exercício crítico, de resistência ao que é determinado, uma rotina; que viva sua liberdade com responsabilidade para com o outro e o mundo; que se assuma como ser cultural, histórico e inacabado e que com esses procedimentos consiga transformar a prática docente em sabedoria, no meu entendimento, é ideológica. É uma ideologia oferecendo resistência àquela que detém o poder. É, portanto, a educação ideológica, como afirma Freire. Em diversos momentos deste estudo, aponto para essa ideologia de resistência, o espaço da utopia. Entretanto, o que discuto como as “terceiras intenções”, que provocam o ensurdecimento da escola, é a ideologia da classe dominante.
Assim sendo, questiono o ensurdecimento da escola, enquanto instituição, mas não pretendo em momento algum, culpar professores, por acreditar que a eles não foi dado o direito de se constituírem como pessoas ousadas e críticas, durante seus próprios processos de escolarização. Cabe, aqui, um resgate do que já foi dito: nem todos que se servem da ideologia têm clareza de suas intenções. É o problema da intencionalidade de significação na produção da ideologia. Quando alunos, entretanto, devem ter criticado ou questionado a ausência de tais objetivos, o que me leva a indagar: os professores lembram-se de que um dia foram alunos?
Enquanto alunos, muitas vezes, acusam discriminação, opressão, classificação, policiamento e expulsão. A continuidade do estudo de muitos destes proporciona a mudança para a categoria de professor. Esta mudança deveria, portanto, merecer também um exercício reflexivo de todos estes, e não só de alguns, profissionais, que permanecem atores nessa instituição em que durante muito tempo foram alunos. A formação escolar e o desempenho na profissão não são apenas dados somados ou adquiridos. Compõem uma relação dinâmica, processual, do que vivemos, aprendemos e ensinamos no decorrer de nossas histórias enquanto sujeitos sociais.
A instituição escolar, composta por muitos escalões hierárquicos, se exime da responsabilidade de se auto-avaliar, não percebendo seu ensurdecimento. Como, então, buscará seu aprimoramento para o “fazer” democrático de ensinar, se ainda não aprendeu a aprender?
Freire (1998) diz que: “como educadoras e educadores somos políticos, fazemos política ao fazer educação. E se sonhamos com a democracia, que lutemos, dia e noite, por uma escola em que falemos aos e com os educandos para que, ouvindo-os possamos ser por eles ouvidos também” (p. 92).
Com Orlandi (1996) amplio a proposta de ouvir e ser ouvido de Freire. A autora sugere um exercício em que basta “deixar vago um espaço para o outro (o ouvinte) dentro do discurso e construir a própria possibilidade de ele mesmo (locutor) se coloca como ouvinte. É saber ser ouvinte do próprio texto e do outro.” (p. 32)
Entendo que o saber se constrói por meio do movimento de ouvir e ser ouvido – “idéias que são produto de um trabalho” - como definiu Chaui (1981, p. 5). Como, então, ainda segundo esta autora, agiremos diante das “idéias que assumem a forma de conhecimento” “idéias instituídas” – ideologia?
Questionamentos como esse, acima levantado, sustentam e alimentam a insegurança que predomina entre educadores, sentimento este que, muitas vezes, os impede de ousar, tornando-os autoritários, distantes da realidade de suas práticas docentes e mais distantes, ainda, de seus alunos. É essa uma postura de defesa que não acrescenta, mas afasta o educador de sua posição de sujeito, transformando-o em mero objeto transmissor de conteúdos curriculares, descontextualizados do universo histórico-cultural em que foram produzidos.
Freire (1998) sugere um caminho de ação diante da situação que vem sendo analisada. Diz ele que: “Diante do medo, seja do que for, é preciso que, primeiro, nos certifiquemos, com objetividade, da existência das razões que nos provocam medo. Segundo, se existente, realmente, compará-las com as possibilidades de que dispomos para enfrentá-los com probabilidade de êxito. Terceiro o que podemos fazer para se for o caso, adiando o enfrentamento do obstáculo, nos tornemos mais capazes para fazê-lo amanhã” (p. 40).
Muitas são as ideologias, absorvidas pela educação, desde o período anterior à Proclamação da República, que ainda estão presentes, hoje, na fala de muitos educadores, como por exemplo: “educação, direito de todos” e “igualdade de oportunidades”. Soares (1991) pergunta se essa é “uma escola para o povo ou contra o povo?” Conforme anunciei, destacarei a partir desse momento a questão da educação em uma sociedade, controlada pela ideologia da classe dominante, concordando com a afirmativa de Ramalho (1976) “é impossível tratar a prática educativa dissociada das ideologias presentes na sociedade” (p. 26). Ampliando tal afirmativa, acredito que só é possível entender a regência ideológica do presente, se entendermos como se constituiu historicamente.
Partindo desses pressupostos, retomo as “terceiras intenções”- as ideologias que marcaram e marcam a história da educação brasileira, espaço onde apenas o aluno é responsável por seus fracassos. É em Saviani (1983) que começo minha trajetória de decifração dessas “terceiras intenções”. Segundo esse autor, foi sobre a base da igualdade que se estruturou a pedagogia da essência, ou seja, todos os homens são iguais e livres: discurso da burguesia, buscando destruir o sistema feudal e iniciar o sistema do modo de produção capitalista. Livres, os homens poderiam vender sua força de trabalho. Mas o capital a compraria se houvesse interesse.
Assim, a burguesia assume o poder, institui-se como classe dominante. A burguesia vai, no século XIX, estruturar os sistemas nacionais de ensino e advogar a escolarização para todos. A intenção é escolarizar todos os homens, converter servos em cidadãos, para que participem do processo político com o objetivo de consolidar a ordem democrática. O papel político da escola ficaria definido: a escola seria o espaço para consolidação da ordem democrática instituída pela burguesia.
Soares (1991) denomina a pedagogia da essência de ideologia do dom, ou seja, a escola como espaço de consolidação da ordem democrática oferece “igualdade de oportunidades” - atendendo ao discurso da burguesia - ; entretanto, o bom aproveitamento dessas oportunidades dependerá da aptidão, do talento e da inteligência do cidadão. Assim, a escola não se responsabilizaria pelo fracasso do aluno sendo seu papel adaptar/ajustar os alunos à sociedade, segundo suas aptidões (dons) e características individuais. Portanto, o fracasso do aluno seria justificado pela sua incapacidade de adaptar-se, de ajustar-se ao que a escola lhe oferece. Segundo a ideologia do dom, não é a escola que está contra o povo, mas, sim, o povo contra ele mesmo, por ser incapaz de responder adequadamente às oportunidades que a escola lhe oferece.
A participação política dos homens livres, entretanto, entra em choque com os interesses da burguesia. Enquanto classe revolucionária que se consolida no poder, a burguesia não caminha mais na direção da transformação da sociedade, negando o movimento da história e passando a reagir contra este. É, justamente, neste momento em que a burguesia se consolida no poder, que propõe a pedagogia da existência em detrimento da pedagogia da essência.
Diante dessa perspectiva, cabe compará-las. A pedagogia da essência prega a igualdade dos homens, enquanto, a pedagogia da existência defende o oposto: os homens não são iguais, são totalmente diferentes e essas diferenças devem ser respeitadas. A legitimação das diferenças vem permitir a dominação, os privilégios, enfim, a desigualdade. Tal mudança prejudica o movimento de libertação do homem, proposto pela pedagogia da essência. Há uma reação de defensores desta postura pedagógica que assume defendendo a igualdade entre os homens e lutando pela eliminação dos privilégios que impedem que a população tenha acesso à educação e às mesmas condições sociais, econômicas e políticas. Nesse momento, a classe revolucionária não é mais a burguesia, mas a classe trabalhadora.
Segundo Soares (1991), após o enfraquecimento da pedagogia da essência ou ideologia do dom, a pedagogia da diferença, ou ideologia das “diferenças naturais”, passou a ser percebida não só entre indivíduos, mas também na constituição da sociedade em classes - grupos sociais, econômicos, dominantes, dominados.
A mudança proposta pela burguesia para melhor conduzir os seus interesses no poder, começa a gerar um novo problema, o fracasso escolar, o que significa que a pedagogia da diferença ou a ideologia das “diferenças naturais”, não mais respondia às necessidades da população, ou seja, a pedagogia da diferença não resiste mais à análise social, política e econômica que se faz presente naquele momento.
A origem das desigualdades sociais é econômica e nada tem a ver, segundo Soares, com as desigualdades naturais ou de dom, de aptidão ou de inteligência. O que está presente naquela explicação é o fato de que a classe dominante apresenta “superioridade” no contexto cultural, em contraste com a “pobreza cultural” em que vive a classe dominada, isto é, o meio em que vive este grupo é pobre, não só do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista cultural - sem estímulos sensórios, perceptivos e sociais. Acompanhando esse raciocínio, surge a ideologia da “deficiência cultural”, remetendo ao sentido de carência, falta e ausência de cultura.
O conceito de “deficiência cultural” surge exatamente na sociedade capitalista em que, na sua organização em classes, predominantemente urbana e industrial, convivem vários grupos, cada qual em diferentes condições materiais de existência. Estes grupos, convivem em uma pluralidade cultural em que se articulam relações de interdependência. Nessas sociedades, os padrões culturais da classe dominante são considerados a cultura socialmente privilegiada e considerada legítima, enquanto os padrões culturais da classe dominada são considerados como uma “subcultura”. É justamente neste ponto que as diferenças entre expressões culturais se transformam em deficiência, carência e falta. É, portanto, no interior da escola, na maior parte das vezes, que se cria o fracasso escolar, por meio de currículos e práticas pedagógicas em que “modelos” criados para atender à classe dominante, desestimulam os jovens das classes dominadas. Este procedimento tem sido apontado como uma das razões para o fracasso escolar destes alunos.
Com relação às pedagogias da essência e da diferença, Gadotti (1987) concorda com Saviani (1983) e Soares (1991), acrescentando que a pedagogia da essência/ideologia do dom é extremamente determinista e mecânica, enquanto a existencialista/da diferença é voluntarista e pessimista. Assim: “O conflito entre as duas correntes pedagógicas (essência e da existência) permanecem no interior da metafísica. Tanto uma como a outra consideram a educação do homem como um ‘caso’ individual; consideram a educação como um ‘bem’ particular, uma conquista pessoal. No primeiro caso teríamos a ‘atualização’ de uma essência pré-dada. No segundo caso, teríamos a conquista de uma essência pela luta individual” (Gadotti, 1987, p.149)
Essas concepções de pedagogia são de base humanista e não geraram grandes debates no Brasil. Enquanto Colônia, a educação no país era responsabilidade dos jesuítas e limitada a um grupo de pessoas pertencentes à classe dominante. Segundo Romanelli (1991), os jesuítas “Humanistas por excelência (...), concentravam todo o seu esforço, (...), em desenvolver nos seus discípulos, as atividades literárias e acadêmicas,(...), ideais de “homem culto” (...), educação dominada pelo clero, (...) visava formar letrados eruditos (...) fechada e irredutível ao espírito crítico e de análise, à pesquisa e à experimentação” (p. 34)
Portanto, um ensino desinteressado sem uma utilidade prática visível, para uma sociedade agrícola e escravocrata. Distante da realidade e importado do Ocidente, era o mais conveniente, pois o estudante nada questionava e obtinha títulos como letrado e inteligente. Os denominados “servidores da ordem” deveriam tornarem-se padres, para estes foram fundados os colégios com o ensino voltado para letras ciências humanas e teológicas, também eles eram da classe dominante.
Entretanto, não se pode perder de vista o objetivo do jesuítas em catequizar, recrutavam fiéis e servidores e criaram escolas elementares para crianças indígenas e filhos de colonos para evangelizá-los. Mas estas questões tornaram-se menores diante da educação da elite. Segundo Romanelli (1991), “dela estava excluído o povo e foi graças a ela que o Brasil se “tornou, por muito tempo, um país da Europa”, com os olhos voltados para fora, impregnado de uma cultura intelectual transplantada, alienada e alienante.” (p. 35) Essa é a base da educação brasileira, sustentada pela desigualdade entre classes. Resistiu à passagem do país de Colônia a Império e deste à república.
No século XIX, com o advento da mineração começa a destacar-se uma camada intermediária, que percebeu a escola como instrumento da ascensão social, o que proporcionava uma aproximação das camadas superiores no exercício de funções burocráticas, administrativas e intelectuais. O ensino que essa classe procurava era o mesmo oferecido à elite. Passaram então a dispor do mesmo ensino duas classes sociais. Essa classe, com seus ideais burgueses, se contrapõe à ideologia colonial e sai vitoriosa com a abolição da escravatura, proclamação da República e a implantação do capitalismo industrial.
Em 1922, em função do centenário da Independência, aconteceu uma série de estudos críticos sobre a situação do Brasil. A Semana da Arte Moderna que veio a criticar a constante cópia de padrões europeus nas artes brasileiras, propondo uma libertação desses valores e consequentemente gerou uma concepção nacionalista. Segundo Paschoal Lemme (1991), foi Euclides da Cunha o percursor deste movimento, quando em 1902, publicou “Os Sertões”, totalmente voltado para questões brasileiras. É também este autor quem afirma que, além do movimento de 1922, existiam as conseqüências da 1ª Guerra Mundial, da Revolução Russa de 1917, o processo de industrialização e a urbanização da sociedade provocando uma modernização da sociedade brasileira, o que levou educadores a discutirem também a modernização de educação. Foi criada, então, em 1924, a Associação Brasileira de Educação –ABE -, que veio a desempenhar papel de fundamental importância para demarcar a autonomia da esfera educacional. A partir de 1927, realizou uma série de Conferências Nacionais de Educação. O mais famoso de seus documentos foi o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova de 1932. Destacaram-se neste movimento, três educadores que Paschoal Lemme denomina “os três cardeais da educação”, são eles: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho. Estes desenvolveram uma ação progressista, contrária a educação até então existente no Brasil, elitista, jesuítica e autoritária. Diz este autor que prova deste caráter progressista foi a destruição de toda a obra de Anísio Teixeira, pelo movimento militar após 1935. Os pioneiros eram qualificados como idealistas, acreditavam no evolucionismo econômico e são até considerados ingênuos politicamente. Segundo Buffa e Nosella (1991), os pioneiros: “Não pensavam que o capital industrial, antes mesmo de se generalizar homogênea e racionalmente no país, pudesse ser atropelado pelo capital financeiro monopolista, produzindo graves desequilíbrios sócio-econômicos, isto é, ao lado do polo tecnológico altamente desenvolvido, imensos bolsões de miséria. Foi este processo econômico que destruiu os sonhos dos pioneiros.”.(p.65)
Os debates sobre a educação brasileira são paralisados devido à repressão política, em 1935. E, Paschoal Lemme (1991) conclui que “A elitização vem da situação econômica do país e, de forma alguma, da escola” (p. 65). Este educador filiou-se a ABE em 1926. Foi preso em 1935 quando trabalhava com educação de adultos trabalhadores.
De 1935 a 1945 o país viveu sob a ditadura do Estado Novo, sem debates. Durante dois anos, o professor que não queria ser demitido foi obrigado a “fazer uma preleção contra o comunismo, contra o esquerdismo, contra o marxismo, contra a influência estranha.” (Joel Martins, 1991, p. 95).
A partir de 1940, o ensino brasileiro voltou-se também para o ensino profissionalizante com o objetivo de melhor atender a demanda das indústrias.
Os anos 50, segundo Fávero (1983), foram marcados por outras formas e modos de educação, além da escolar. “O Brasil dos anos 50, na aceleração do desenvolvimento econômico e da modernização, foi pródigo no transplante de experiências geradas em outro contexto: extensão rural, desenvolvimento de comunidades, educação de base, educação de adultos” (p.8). Essas expressões, ao ocultarem seus valores reais, funcionavam como uma forma de manipulação populista das classes populares, através da escola e de campanhas educativas.
Mas a reação não tardou. Na década de 60, mais precisamente, do ano de 1960 a 64, diversos movimentos ideológicos e educativos retomaram essas expressões com novos conteúdos; criticaram a educação oficial, acusaram as campanhas de populistas, denunciaram a elitização do saber e o uso político da dominação. Sobre esse período histórico, Fávero (1983) explica que: “o que se denominou cultura popular e que se definiu e defendeu ora como um movimento, ora como um instrumento de luta política em favor das classes populares, surgiu fazendo a crítica não apenas da maneira de como se pensava ´folclórica´, ´ingênua´ a cultura do povo brasileira, mas também e principalmente os usos políticos de dominação e alienação da consciência das classes populares, através de símbolos e dos aparelhos de produção e reprodução de uma ´cultura brasileira´, ela mesma colonizada, depois internamente colonialista” (p. 8).
A política populista de 50, tão criticada em 60, devia-se ao entendimento de que o mais importante objetivo político de investir em educação, mais precisamente na alfabetização, era a obtenção de maior número de votos. Só votavam os alfabetizados e 50% dos possíveis eleitores eram analfabetos. Foi, portanto, o final da década de 50 e início da década de 60, o período em que os movimentos de educação e cultura popular visavam, não só ao número de alfabetizados, mas, sim, à conscientização do povo, para uma participação ativa na vida política do país.
Segundo Buffa e Nosella (1991), o debate educacional, neste período, alcançou um nível teórico-prático insuportável à ordem política correspondente aos interesses do capital monopolista – estatal e multinacional. Assim, os movimentos educacionais são interrompidos e os educadores silenciados com o golpe militar de 1964.
A ditadura militar durou 21 anos. Nesse período, o sistema educacional foi conduzido pela versão ideológica do “desenvolvimento com segurança”. Foi promulgada a Lei 5.692/71 que introduziu a qualificação para o trabalho, ou profissionalização obrigatória, baseada na Teoria do Capital Humano. Segundo Frigotto (1996), essa teoria era considerada a solução para os problemas nacionais e também individuais: “a idéia de capital humano é uma ‘quantidade’ ou um grau de educação e de qualificação, tomado como indicativo de um determinado volume de conhecimentos, habilidades e atitudes adquiridas, que funcionam como potencializadoras da capacidade de trabalho e de produção. Desta suposição deriva-se que o investimento em capital humano é um dos mais rentáveis, tanto no plano geral do desenvolvimento das nações, quanto no plano da mobilidade individual” (p. 41).
Essa teoria, portanto, reafirma que existem diferenças individuais e de classes. Dá a cada homem a certeza de que é “livre” para investir cada vez mais em seu futuro profissional e também social. Assim, caso fracasse, a culpa é única e exclusivamente dele: ou não se dedicou com afinco, ou não tem aptidões, falta-lhe vocação (ideologia do dom/essência).
Com o fim da ditadura militar, o predomínio da Teoria do Capital Humano, que visava o profissional qualificado para a indústria, começa a ser abandonada, sendo substituída por um novo modelo de organização, a sociedade do conhecimento, que propõe uma nova qualificação humana para a área tecnológica.
O objetivo desta revisão histórica advém da necessidade de apontar as muitas situações em que se prega a “igualdade de oportunidades”, reforçando as desigualdades. Também, e principalmente, que em todos os casos, cabe à escola criar possibilidades, transformar, preparar e excluir aqueles que não conseguem acompanhar o processo, mesmo que esse procedimento não seja explícito, induzindo muitas vezes o indivíduo a situar-se à margem do processo social/escolar.
É esse conjunto de situações que denomino “terceiras intenções”, ou as muitas ideologias, que permearam e permeiam a educação, provocando o ensurdecimento da escola. Por mais que os professores estejam atentos, a ideologia do dominador, de muitas formas, está influenciando seus discursos, fazendo-os um composto de vários matizes ideológicos. Um exemplo dessa composição é a ideologia do dom ou essência (prega a igualdade de todos e os fracassos são considerados responsabilidades individuais),que permanece até os dias atuais, inserida no discurso institucionalizado na escola. Tal ideologia foi importada pela educação brasileira em período anterior à Proclamação da República-criticada e rejeitada pelos Pioneiros da Educação, nos anos 30, absorvida pela Teoria do Capital Humano, nos anos 70, e perpetuada, em 80/90, na sociedade do conhecimento.
Torna-se difícil, portanto, criticar o professor que culpa o aluno pelos fracassos sem sequer questionar sua prática e seu discurso pedagógico.
Segundo Bakhtin (1997a), o discurso se dá com a palavra, que é sem dúvida, o recurso privilegiado da comunicação. A ela, é conferido um importante lugar na constituição da consciência, é um signo ideológico por excelência. Marca as mais simples relações sociais, nos sistemas ideológicos constituídos, como na ideologia do cotidiano. Entendo que mesmo a escola sendo uma instância pública de uso da linguagem (Geraldi, 1996, p. 39-40), a ideologia cotidiana está entranhada no sistema lingüístico ideologicamente constituído. Segundo Bakhtin, é na ideologia cotidiana que se formam e se renovam as ideologias constituídas. Não seria, então, a ação de questionar a prática e o discurso pedagógicos, um exercício em busca de uma renovação, que deixasse de atribuir ao aluno toda a responsabilidade de seus fracassos?

BIBLIOGRAFIA

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FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1996.

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GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem.2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

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LEMME, Paschoal, in BUFFA, Ester e NOSELLA, Paolo. Educação negada: introdução ao estudo da educação brasileira contemporânea. 1 ed. São Paulo: Cortez, 1991.

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SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 8 ed. São Paulo: Ática, 1991 (Série fundamentos).

Contar, contar e contar...

Anésia Maria Costa Gilio

Contar, contar e contar foi um exercício da liberdade. Precisei buscar outros tempos, além dos vividos por mim, com o objetivo de perceber nesses tempos a presença da música retratando o presente.
Parto do pressuposto de que a música é um veículo do qual o povo brasileiro faz uso, para comunicar suas paixões, angústias, críticas, seus medos, coragens e buscas, e que as letras, em sua contemporaneidade, permitem ao povo interagir e dialogar com elas. Ao definir que é justamente nas letras das músicas em que está calçada minha pesquisa, entendo ser importante compreender como, ou melhor, qual o percurso seguido, a história, a trajetória, que proporcionou aos jovens de hoje, ouvir e cantar música genuinamente brasileira. Essa afirmativa se deve à forte influência da música estrangeira nas décadas anteriores, cenários diferentes da década de 90, período marcado pelos mais diversos matizes da música popular brasileira. Uma década em que as rádios e televisões dão grande destaque à música sertaneja, baiana, pagode, samba etc.
Cabe também ressaltar que, em muitos momentos, será necessário, o uso de linguagem coloquial, o que espero não desmerecer a importância dos personagens destacados, que são: Ernesto Nazareth; Heitor Villa-Lobos; Chiquinha Gonzaga; Catulo da Paixão Cearense; Pixinguinha; Lamartine Babo; Ary Barroso; Cartola; Noel Rosa; Nelson Cavaquinho; Assis Valente e Braguinha (João de Barro).
Brasileiros, compositores, lutadores em busca de canções nacionalistas. Muitos outros, de igual importância, não são citados neste estudo, não por esquecimento, mas pela necessidade de pinçar alguns dos precursores do samba, primeiro grande movimento da música popular. A partir da bossa nova, passo a falar apenas de canções, sem me prender às histórias pessoais dos compositores. Esse procedimento se fez necessário, nos relatos iniciais, devido às dificuldades vividas no começo do século, dificuldades essas, que não viveram seus seguidores, embora outras tenham surgido, mas aí as letras das músicas se incumbirão de contá-las.
Como, então, se fez a história? Quem são esses compositores escolhidos? Para essas perguntas, busco respostas a seguir, seguindo a seqüência anunciada.

Ernesto Nazareth (1863-1934), segundo Siqueira (Nova História MPB, 1977), foi um divisor de águas da música. Os estudos mais recentes sobre música cultural brasileira pontuam duas eras distintas: antes e depois de Ernesto Nazareth, já que algumas de suas músicas demonstram sofrer forte influência estrangeira e outras são marcadas por características nacionalistas. Mas Nazareth não foi um compositor popular. Suas músicas eram elaboradas com sofisticação para um instrumento único, o piano. Segundo Severiano e Mello (1998), esse compositor buscava os sons produzidos pelos músicos populares – de rua – e lapidava-os no piano com requinte.
Após compor o tango “Brejeiro” (1893) recebeu o título de “compositor mais original do Brasil”. Esta e poucas outras músicas receberam letras. A mais conhecida é o choro “Odeon”, gravada por Nara Leão, com letra de Vinícius de Morais, por solicitação da cantora, em 1968. A obra de Ernesto Nazareth, analisada quanto a sua estrutura pianística, torna-o um músico erudito.

Heitor Villa-Lobos (1877-1959). Villa-Lobos começou a compor aos trinta e oito anos (1915) e nos anos vinte já suscitava atenção e grandes polêmicas, devido a sua originalidade brasileira. Segundo Passos (1972), suas músicas tinham traços característicos próprios. Tornou-se conhecido internacionalmente, muitas vezes premiado e homenageado. O compositor paulista Camargo Guarnieri comenta, em Passos (1972), que Villa-Lobos precisou lutar contra a indiferença, a incompreensão, a humilhação e o desrespeito em sua própria terra. Somente após sua morte, recebeu o reconhecimento e as glórias merecidas. De acordo com os registros de Passos (1972), foi em 1960, um ano após sua morte, que Villa-Lobos foi homenageado com um museu que recebeu seu nome.
Acredito que a melhor maneira de definir Villa-Lobos está na manifestação popular, mais marcante no seu país de origem, o carnaval. Ano de 1999, “Villa-Lobos e a Apoteose Brasileira”.
Composição de Santana, Nascimento e Ricardo Simpatia. Samba enredo da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Segue na íntegra, a brilhante definição:

“Rompeu barreiras / Atravessou fronteiras / Para sua música despontar / Esse gênio brasileiro / Conquistou o mundo inteiro / Fez nosso país se orgulhar / palmilhando os quatro cantos do gigante / De folclore fascinante / Fonte de belezas naturais / Criou grandes temas musicais / Papagaio do moleque enfeitando o céu azul / O uirapuru a encantar de Norte a Sul / As bachianas, quanta emoção! / É lindo o chorinho, rasga o coração / Deixou cantar em sua música / A fauna, flora, rio e mar (o mar) / No concerto da floresta ao luar / Canta o pajé... dança o manduçarará / Refletindo a poesia, mistérios e magias / Da cultura popular / Criança esperança vem pra folia cirandar / Que hoje a batuta do maestro / Rege a sinfonia desta arte milenar / (Villa-Lobos) / Villa-Lobos é prova de brasilidade / Sua obra altaneira / Vem na voz da Mocidade / Cantando a apoteose brasileira”
Heckel Tavares, compositor nacionalista, diz Passos (1972), estabelecia uma diferença entre sua música e a do “extraordinário” Villa-Lobos, que a seu ver é o maior compositor brasileiro e o maior do século, apesar da diferença de estilos: o seu, popular e o de Villa-Lobos, erudito.

Chiquinha Gonzaga (1847-1935) conseguiu, aos trinta anos, apresentar-se, como compositora, para a sociedade da época. Executou em tal apresentação uma polca na improvisação coletiva de um choro, intitulado “Atraente”.
Chiquinha Gonzaga viveu à frente do seu tempo histórico. Quando se casou foi obrigada a desfazer-se do piano, instrumento que tocava desde sua infância, por imposição do marido, de quem rapidamente separou-se. Para sobreviver e criar seus filhos, precisou lutar muito, na busca de seu espaço, em um país governado por e para o gênero masculino. Uniu-se a José do Patrocínio na corrida por recursos para o fundo de manumissão – alforria ou libertação –, de escravos. Para esse fim vendia partituras de suas músicas de porta em porta e, com o resultado dessas vendas, antecipou-se à Lei Áurea e comprou a liberdade do escravo-músico José Flauta. Essas partituras eram da composição “Caramuru” dedicada à princesa Isabel. Consta também, segundo a Nova História da MPB (1977, p. 10) que, em 1889, teve seu nome ligado aos combatentes da República.
Foi em 1899, atendendo ao pedido dos integrantes do cordão carnavalesco Rosa de Ouro, que Chiquinha Gonzaga compôs o que se tornaria um marco dos carnavais e também de sua presença naquela manifestação popular que tanto lhe agradava: a composição “Ó abre alas”, uma marcha-rancho. Segue a letra desta música na íntegra:

“Ó abre alas / Que eu quero passar / Ó abre alas / Que eu quero passar / Eu sou da Lira / Não posso negar / Ó abre alas / Que eu quero passar / Ó abre alas / Que eu quero passar / Rosa de ouro / É quem vai ganhar”. (Nova História MPB, 1977, p. 13)

Segundo Severiano e Mello (1998), “Ó Abre Alas” teve especial importância na obra dessa compositora. Dizem os autores:
“...Lhe dá o pioneirismo da produção carnavalesca, antecipando-se em vinte anos à fixação do gênero.De acordo com Almirante, “Ó Abre Alas “foi a composição preferida dos foliões de 1901 e de anos seguintes, até 1910 pelo menos.” (Severiano e Mello, 1998, p. 19)
Outra constatação deste marco carnavalesco – “Ó abre alas” – ocorreu em 22-11-97, quando o jornal “O Globo” (Segundo Caderno, 1997, p. 3) publicou as 14 melhores canções do século, escolhidas por 13 pesquisadores selecionados por Ricardo Cravo Albim. Além de constar dentre as 14, ainda era a mais antiga delas, composta ha 98 anos atrás.
Em 1917, a compositora passou a integrar a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) e já havia se transformado numa figura simbólica do teatro musicado.
Catulo da Paixão Cearense (1863-1946) é autor, de parceria com João Pernambuco, de “Luar do sertão” que é considerado por muitos como uma espécie de “segundo hino nacional”. (História da MPB - Série Grandes Compositores, 1982, p. 5)
Catulo da Paixão Cearense aprendeu a tocar violão aos dezessete anos, enquanto os demais compositores citados até o momento aprenderam a tocar piano na infância. O violão era tido como instrumento de malandro e foi esse compositor o responsável pela sua entrada nos salões da elite.
Diferentemente de Chiquinha Gonzaga, que se envolveu no cenário político brasileiro, Catulo da Paixão Cearense esteve sempre próximo dos políticos. Quando “foi ouvido pelo Presidente Nilo Peçanha em recital no Catete, recebeu aplausos e um cargo na Imprensa Nacional.” (História da MPB, 1982, p. 5).
A canção apontada como segundo hino nacional tornou-se conhecida, em 1906, quando foi gravada por Mário Pinheiro. O Hino Nacional Brasileiro, oficial, é de autoria de Francisco Manoel da Silva. Composto provavelmente em 1831, só foi oficializado com a República. A letra, de Osório Duque Estrada, tornou-se oficial em 1922. (Larousse, 1980, p. 1248)
Não há como negar a beleza do Hino Nacional Brasileiro, mas também é importante apontar que sua letra usa uma linguagem rebuscada, o que não acontece em “Luar do Sertão”, uma toada simples. Sendo assim, é aceitável concordar com o título de “segundo hino”, pelo grande número de pessoas que a cantam no dia-a-dia, independentemente das festividades cívicas. Ambas as canções, contudo, têm características nacionalistas.

Pixinguinha – Alfredo da Rocha Vianna Júnior (1898-1973). Negro, pobre, vindo do subúrbio, já trabalhava como flautista aos treze anos, quando compôs sua primeira música, o chorinho “Lata de Leite”. No ano seguinte (1912), atuou no carnaval como diretor de harmonia do Rancho Paladinos Japoneses.
Esse compositor era freqüentador assíduo das casas das tias. As “tias” foram os pilares do samba na cidade do Rio de Janeiro. A mais famosa delas foi tia Ciata. Foram elas que trouxeram a cultura popular de Salvador para seus descendentes e para quem mais se aproximasse. Elas eram festeiras. Ciata era casada com João Batista da Silva, bem empregado no Rio, devido a sua escolaridade. Essa tia sabia como agir para não ter problemas com a polícia. Segundo Pixinguinha “tocava-se choro na sala e samba no quintal”. Tal divisão era explicada pelo fato de ser o choro tolerado pela polícia, enquanto o samba era considerado coisa de marginais e era perseguido. (História do Samba, 1997, 1, p. 13)
Foi justamente na casa de tia Ciata que surgiu o primeiro samba da história fonográfica (1917), mas também o mais polêmico, “Pelo telefone”. Donga registrou-o como seu. Depois de grande confusão, concordou em dar parceria a Mauro de Almeida. Segundo a história do samba (1997), o objetivo de Donga era tirar do anonimato os compositores de seu grupo. Assim, após registrar a música na Biblioteca Nacional (1916), tornou-se o primeiro compositor profissional (História do Samba, 1997, 1, p. 15).
A polêmica em torno do samba “Pelo telefone” ocorreu, por ser comum a prática do improviso na casa de tia Ciata. Situações cotidianas, adicionadas de humor, transformavam-se em sambas. Uma dessas situações foi o combate, pela polícia, aos jogos de azar. Assim contado, pela História do Samba (1997):
“No dia 20 de outubro de 1916, Aurelino Leal, chefe da polícia do Rio de Janeiro,então Distrito Federal, determinou por escrito aos seus subordinados que informassem “antes pelo telefone” (as aspas são nossas), aos infratores a apreensão do material usado no jogo de azar. Imediatamente o humor carioca captou a comicidade do episódio, que ao lado de outros foi cantado em versos improvisados nas festas de tia Ciata”
(História do samba, 1997, 1, p. 16)
A improvisação, versão popular ridicularizava o chefe de polícia, apontando-o como um informante dos locais onde era possível jogar.

“O chefe da polícia / Pelo telefone / Mandou avisar / Que na Carioca / tem uma roleta / Para se jogar.
Ai, ai, ai / O chefe gosta da roleta, / Ô maninha / ai, ai, ai / Ninguém mais fica porreta / Ô maninha.
Chefe Aureliano, / Sinhô, Sinhô / É bom menino, / Sinhô, Sinhô / Pra se jogar, / Sinhô,Sinhô / De todo o jeito, / Sinhô, Sinhô / O bacará / Sinhô, Sinhô / O pinguelim, / Sinhô, Sinhô / Tudo é assim.”
Donga registrou a idéia com a outra versão. Nela homenageava “Peru”, Maurício de Almeida, que veio a tornar-se co-autor, e “Morcego”, Norberto do Amaral Júnior, muito conhecido no Clube dos Democráticos (Clube no Rio de Janeiro, famoso na época). Esta é a versão de Donga:
“O chefe da folia / pelo telefone / manda avisar / que com alegria / não se questione / para se brincar.
Ai, ai, ai, / deixe as mágoas para trás / Ô rapaz! / Ai, ai, ai, / Fica triste se és capaz / E verás.
Tomara que tu apanhes / Pra nunca mais fazer isso / Tirar amores dos outros / E depois fazer feitiço...
Ai, a rolinha / Sinhô, Sinhô / Se embaraçou / / Sinhô, Sinhô / É que a avezinha / Sinhô, Sinhô / Nunca sambou / Sinhô, Sinhô / Porque esse samba, / Sinhô, Sinhô / É de arrepiar, / Sinhô, Sinhô / Põe perna bamba, / Sinhô, Sinhô / Me faz gozar, / / Sinhô, Sinhô / O “peru” me disse / Se o “Morcego” visse / Eu fazer tolice, / Que eu então saisse / Dessa esquisitice / De disse que não disse.
Ai, ai,ai / Aí está o canto ideal / Triunfal / Viva o nosso carnaval, / Sem rival.
Se quem tira amor dos outros / Por Deus fosse castigado / O mundo estava vazio / E o inferno só habitado.
Queres ou não / Sinhô, Sinhô / Vir pro cordão, / Sinhô, Sinhô / Do coração, / / Sinhô, Sinhô / Por este samba.”
Mesmo tendo sido Donga, o primeiro compositor profissional, foi Pixinguinha quem recebeu títulos como: gênio da música popular, guru da MPB e muitos outros.
Esse compositor que teve sua obra muitas vezes regravada na década de 90 do século XX, nasceu no século passado (1897).
Pixinguinha uniu sua inspiração às questões sociais que compunham o cenário da cidade do Rio de Janeiro, como: as primeiras favelas, constituídas de pessoas que vieram da guerra de Canudos; a chegada dos baianos para trabalhar na remodelagem da cidade; a luta de Oswaldo Cruz contra a febre amarela, desafio da saúde pública. Essa união encantou, não só o Brasil, mas também o mundo europeu. Em 1923, com 26 anos, compôs a que viria a ser a mais famosa de suas músicas, mas a escondeu por catorze anos por entender que era uma composição “jazzificada”. Em 1937, João de Barro fez a letra. Pixinguinha conta que “ninguém queria gravar. Francisco Alves e Carlos Galhardo se negaram, ela acabou sendo gravada por Orlando Silva”. (Pixinguinha in Nova História da MPB, 1976, p. 12)
Esta música é “Carinhoso” até hoje cantada pelos mais velhos e pelos mais novos. Esta letra é destacada a seguir:

Carinhoso
“Meu coração / Não sei porque / Bate feliz / Quando te vê / E os meus olhos ficam sorrindo / E pelas ruas vão te seguindo / Mas mesmo assim / Foges de mim
Ah! se tu soubesses como eu sou tão carinhoso / E o muito e muito que te quero / E como é sincero o meu amor / Eu sei que tu não fugirias mais de mim / Vem, vem, vem, vem, vem, sentir o calor / Dos lábios meus / À procura dos teus
Vem matar esta paixão / Que me devora o coração / E só assim então / Serei feliz / Bem feliz.”

Pixinguinha morreu em 1974. Recebeu muitas homenagens em vida e ainda hoje é sempre lembrado em eventos da MPB.

Lamartine Babo (1904-1963). Aos treze anos, compôs a valsa “Torturas do amor”, homenageando seu pai, um grande apaixonado por esse ritmo e que veio a falecer no mesmo ano (1917).
Com 15 anos, estudando no colégio São Bento, compôs a “Ave Maria” para ser cantada em seu casamento, o que só viria a acontecer aos 47 anos em 1951. Casou-se no civil e sua composição não fez parte da cerimônia. “Ave Maria” foi incorporada, entretanto, no ritual de primeira comunhão do Colégio São Bento, no momento da eucaristia:

Ave Maria
 “Ó Maria, concebida / Sem pecado original / Quero amar-te toda a vida / Com ternura filial. / Vosso olhar a nós volvei / Vossos filhos protegei / ó Maria, ó Maria / Vossos filhos protegei.” (Nova História da MPB, 1976, p. 1)
Bem humorado Lamartine Babo tinha facilidade para inventar piadas e fazer trocadilhos. Foram essas as características que o levaram, nos anos vinte, ao teatro de revista. Em vinte e quatro, saiu pela primeira vez em um bloco carnavalesco. Essa experiência o entusiasmou a compor para o carnaval. Em vinte e sete, entrou para o bloco carnavalesco do compositor Luis Nunes Sampaio, o Careca, vencedor dos carnavais de 1920, 22 e 24. Segundo a Nova História da MPB “era o encontro de um campeão do passado com o grande campeão dos anos futuros.” (Nova História da MPB, 1976, Lamartine Babo, p. 3)
Logo no ano de 1928, lançou sua primeira marchinha, uma sátira à moda da calça boca-de-sino, lançada na Inglaterra pelo Príncipe de Gales, depois Duque de Windsor.
“Vem, meu bem / Que as calças-largas / Não te podem sustentar / Sem vintém / Almoçam brisas / E à noite vão dançar.” (Nova História da MPB, 1976, Lamartine Babo, p. 3)
Foi essa marchinha, a primeira composição de Lamartine Babo a ser gravada e consagrada pelos foliões. Compor especialmente para o carnaval já era um hábito dentre os músicos na década de 20, que tinham como percursora “Ó abre alas”, de Chiquinha Gonzaga. Entretanto, segundo a Nova História da MPB (1976), até os anos vinte, os compositores eram quase amadores, querendo levar o samba adiante.
Mas a década de trinta, segundo Lúcio Rangel (1976), foi a época de ouro, o esplendor da música popular brasileira.
“A geração que então surgiu apresentou, de cara, uma turma nova, embora alguns viessem de tempos quase vizinhos – Lamartine Babo, Noel Rosa, Ary Barroso. Ao mesmo tempo surgiam, nos morros um Cartola e um Nelson Cavaquinho.” (Rangel in Nova História da MPB – Lamartine Babo, 1976, p. 5)

Foi Lamartine Babo que deu a contribuição decisiva, na década de trinta, para que as músicas compostas para o carnaval alcançassem sua expressão máxima. Não era mais preciso, divulgá-las nos blocos, pois as rádios passaram a desempenhar essa função. Lamartine Babo trabalhou em várias rádios, tendo programas com títulos e horários diferentes. Nessa função trabalhou por vinte e cinco anos. Qualquer tema era motivo para compor. Começou fazendo hinos religiosos, tornou-se conhecido com marchinhas maliciosas, fez músicas para festas juninas e natalinas, sem contar hinos para times de futebol. Seu programa “O trem da alegria” foi um dos mais famosos da era do rádio. Prova disso está na homenagem que a Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense fez a “Lalá,” como era conhecido Lamartine Babo, no carnaval de 1981, destacada neste momento:

“Neste palco iluminado / Só dá Lalá / És presente, imortal / Só dá Lalá / Nossa escola se encanta / O povão se agiganta / É dono do carnaval / Lá lá lá lá Lamartine / Lá lá lá lá Lamartine / Em teu cabelo não nega / O grande amor se apega / Musa divinal / Eu vou m'embora / Vou no trem da alegria / Ser feliz um dia / Todo dia é dia / Linda morena / Com serpentinas / Enrolando foliões / Dominós e colombinas / Envolvendo corações / Quem dera / Que a vida fosse assim / Sonhar, sorrir / Cantar, sambar / E nunca mais ter fim.”

Encerrando esse rápido relato sobre Lamartine Babo, quero registrar uma valsa que o compositor fez em parceria com Francisco Matoso “Eu sonhei que tu estavas tão linda”, gravada em 1941, obtendo grande sucesso.

Eu sonhei que tu estavas tão linda
“Eu sonhei que tu estavas tão linda / Numa festa de raro esplendor / Teu vestido de baile lembro ainda / Era branco, todo branco, meu amor / A orquestra tocou uma valsa dolente / Tomei-te aos braços / Fomos dançando / Ambos silentes / E os pares que rodeavam entre nós / Diziam coisas / Trocavam juras / A meia voz / Violinos enchiam o ar de emoções / De mil desejos uma centena de corações / Pra despertar teu ciúme / Tentei flertar alguém / Mas tu não flertaste ninguém / Olhavas só para mim / Vitória de amor cantei / Mas foi tudo um sonho... acordei!.”

Ary Barroso (1903-1964) compôs pela primeira vez, aos 15 anos de idade, a música “De longe”. Em 1930, formou-se em Direito pela Universidade do Rio de Janeiro. Nessa época já era conhecido como compositor.
Em 1934, Carmem Miranda e Os Diabos do Céu sob a direção de Pixinguinha gravaram “Na batucada da vida”, a composição de Ary Barroso em parceria com Luiz Peixoto (Nova História da MPB, 1976, Ary Barroso, contracapa).
Em 1936, compôs “No tabuleiro da baiana”, letra e música, que foi gravada por Carmem Miranda e Luiz Barbosa. (Nova História da MPB, 1976, Ary Barroso, contracapa) segundo Severiano e Mello (1998), esse samba – batuque é uma “letra dialogada entre um homem e uma mulher, muito bem construída (...), sendo revivido, em 1980, por Gal Costa e Caetano e, em 1983, por Maria Bethânia e João Gilberto.” (Severiano e Mello, 1998, p. 147)
Ainda na década de trinta, foram gravadas: “Como ‘vaes’ você?”, 1936; “Na baixa do sapateiro”, 1938, e “Aquarela do Brasil”, em 1939. A essa última darei maior destaque, registrando sua letra na íntegra, como também os comentários do autor, sobre o momento de sua criação.

Aquarela do Brasil
“Brasil / Meu Brasil brasileiro / Meu mulato inzoneiro / Vou cantar-te nos meus versos / O Brasil, samba que dá / Bamboleio, que faz gingar / O Brasil do meu amor / Terra de Nosso Senhor / Brasil, Brasil / Pra mim, pra mim / Ôi! abre a cortina do passado / Tira a mãe preta do cerrado / Bota o rei-congo no congado / Brasil, Brasil / Deixa cantar de novo o trovador / À merencória luz da lua / Toda a canção do meu amor / Quero ver a sá dona caminhando / Pelos salões arrastando / O seu vestido rendado / Brasil, Brasil / Pra mim, pra mim / Oh! Ôi essas fontes murmurantes / Ôi onde eu mato minha sede / E onde a lua vem brincar / Oh! esse Brasil lindo e trigueiro / És meu Brasil brasileiro / Terra de samba e pandeiro / Brasil, Brasil / Pra mim, pra mim.”

Essa é “uma das músicas brasileiras tida como mais conhecidas no mundo inteiro.” (Nova História da MPB, 1976, Ary Barroso, contracapa) A partir dessa informação passo a transcrever o depoimento de Ary Barroso, sobre a emoção de compor esse samba:
“Senti iluminar-me uma idéia: a de libertar o samba das tragédias da vida, (...) do cenário sensual já tão explorado. Fui sentindo toda a grandeza, o valor e a opulência de nossa terra. (...) Revivi, com orgulho, a tradição dos painéis nacionais e lancei os primeiros acordes, vibrantes, aliás. Foi um clangor de emoções. O ritmo original(...) cantava na minha imaginação, destacando-se do ruido da chuva, em batidas sincopadas de tamborins fantásticos. O resto veio naturalmente, música e letra de uma só vez.(...)De dentro de minh’alma extravasara um samba que eu há muito desejara.” (Ary Barroso in Severiano e Mello, 1998, p. 177)

Cartola – Angenor de Oliveira (1908-1980) – só foi reconhecido, tardiamente, na década de sessenta. Na década de trinta, vivia para a escola de samba “Estação Primeira de Mangueira” criada em 1928, da qual era diretor. Segundo a Nova História da MPB (1976), duas de suas composições foram gravadas nos anos trinta: “Divina dama” e “Não quero mais amar a ninguém”.
O homem simples, pobre, que morava no morro da Mangueira, sofreu muito e tornou-se conhecido com a canção abaixo:

As rosas não falam
“Bate outra vez / Com esperanças o meu coração / Pois já vai terminando o verão, enfim / Volto ao jardim / Com a certeza que devo chorar / Pois bem sei que não queres voltar / Para mim / Queixo-me as rosas / Mas que bobagem / As rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti / Devias vir / Para ver os meus olhos tristonhos / E quem sabe sonhavas meus sonhos / Por fim.”

Nelson Cavaquinho (1911-1986). Esse compositor transformava suas tristezas em poesia. Acreditava que compor era uma diversão e proporcionava prazer. Não se preocupava em divulgar suas músicas, gravando-as. Preferia cantá-las em bares. Vendia suas músicas para sobreviver. Dava parceria para pagar dívidas. Segundo MPB Compositores (1997), o dono do hotel em que Nelson Cavaquinho morou por muitos anos, Senhor César Brasil, entrou para a história da música popular brasileira sem nunca ter composto um verso e nem tocado um instrumento. Nelson Cavaquinho realmente tornou-se conhecido nos anos sessenta, quando freqüentava o Zicartola – bar de Cartola e Zica. Na década de quarenta, Roberto Silva lançou o samba “Notícia”, de Nelson Cavaquinho, que destaco a seguir:

Notícia
“Já sei a notícia que vens me trazer / Os teus olhos só faltam dizer / Que o melhor é eu me convencer. / Guardei até onde eu pude guardar / O cigarro deixado em meu quarto / É a marca que fumas / Confessa a verdade / Não deves negar / Amigo como eu jamais encontrarás / Só desejo que vivas em paz / Com aquela que manchou meu nome / Vingança, / Meu amigo, eu não quero vingança / Os meus cabelos brancos me obrigam / A perdoar uma criança.”

Noel Rosa (1910-1937) ingressou na faculdade de medicina, mas abandonou o curso em 1932. Optando pelo samba, compôs durante esse ano em que cursou a faculdade mais de vinte músicas (Nova História da MPB, 1976, Noel Rosa, 4)
A vida irregular e a dificuldade para se alimentar, devido a problema de nascimento, no queixo, encurtaram sua vida. Em 1934, já sofria com problemas pulmonares sérios. Iniciou, então, um tratamento que interrompeu no ano seguinte, mesmo com o aviso do médico, de que só teria mais dois anos de vida. Assim aconteceu. Em 1937, com 27 anos, morreu Noel Rosa. O bairro de Vila Isabel perdeu seu ilustre compositor e o samba perdeu um jovem sambista. Um jovem atento às mudanças. Percebeu a transformação das rádios, a grande maravilha do século XX, que nos anos vinte funcionavam por poucas horas por dia e sobreviviam pela abnegação dos dirigentes e colaboração dos artistas. Nos anos trinta, além das anteriores Rádio Sociedade e Rádio Clube do Brasil, surgiram mais três: Mayrink Veiga, Educadora e Philips, naquele momento, já mantidas por publicidade, ainda que precárias. Noel viu que os astros do cinema perdiam a vez para os “ases” do rádio. Era, portanto, a hora de entrar no rádio, o que para ele não foi difícil. Neste cenário de evoluções progressivas, a música brasileira tem o seu lugar. É o samba a música popular.
As composições de Noel Rosa mostram que o samba passou a pontuar com determinação as questões sociais. Seu primeiro sucesso, datado de 1931, foi o samba/carnaval “Com que roupa.” Segundo Severiano e Mello (1998),resgatando registros feitos pelos biógrafos, João Máximo e Carlos Didier, Noel Rosa confessou a um tio que:
““Com que roupa”, retratava de forma metafórica o Brasil – “um Brasil de tanga, pobre e maltrapilho”. Daí, talvez, a semelhança de seus compassos iniciais com os do Hino Nacional Brasileiro (problema corrigido pelo músico Homero Dornelas ao passar a melodia para a pauta).” (Severiano e Mello, 1998, p. 105)
As canções de Noel Rosa, em especial, marcam a década de 30. Como confirmação de tal afirmativa, selecionei uma letra que certamente os jovens de hoje gostariam.

Onde está a honestidade
“Você tem palacete reluzente / Tem jóias e criados à vontade / Sem ter nenhuma herança / Nem parente / Só anda de automóvel na cidade / E o povo já pergunta com maldade / Onde está a honestidade / Onde está a honestidade
O seu dinheiro nasce de repente / E embora não se saiba se é verdade / Você acha nas ruas diariamente / Anéis, dinheiro e até felicidade / E o povo já pergunta com maldade / Onde está a honestidade / Onde está a honestidade
Vassoura dos salões da sociedade / Que varre o que encontrar / Em sua frente / Promove festivais de caridade / Em nome de qualquer defunto ausente / E o povo já pergunta com maldade / Onde está a honestidade /Onde está a honestidade”

A letra desse samba, sucesso no ano 1933, é de uma atualidade, que parece ter sido composta nos anos 90. Em minha leitura, aproxima-se muito das músicas cantadas pelos jovens de hoje. É uma denúncia a fatos freqüentes na sociedade brasileira.
Noel Rosa foi, sem dúvida, não desmerecendo os demais compositores e compositoras, a força da música popular brasileira, o elo de seus antecessores com seus sucessores. Foi Noel Rosa quem apontou a integração do morro com a cidade, tanto nas coisas boas, como nas ruins.
O tempo limitado, como também o afastamento do meu objeto de pesquisa, que está voltado para as canções cantadas pelos jovens hoje, me impede de destacar um maior número de composições, que certamente confirmariam seu envolvimento crítico com as questões sociais. São composições da década de trinta, perfeitamente cabíveis nos dias de hoje. Questões sérias, em sintonia com a realidade do país, apresentadas com graça, ritmo e beleza.

Assis Valente (1911-1958) Esse compositor, durante toda a década de trinta e início da década de quarenta tem seu nome em grande destaque.
“Suas letras simples caracterizavam-se principalmente por dois aspectos: traziam o retrato exato de uma época, tomando em suas nuanças mais pitorescas, e mostravam a preocupação (às vezes até ingênua) de valorizar o que fosse autenticamente brasileiro. A vida agitada de uma cidade que crescia rapidamente, os problemas do homem urbano, a verve do carioca, tudo isso Assis soube assimilar e transpor para sua obra.” (Nova História da MPB, 1976, AssisValente, p. 7)
Na obra de Assis Valente, portanto, está presente a transformação que Noel Rosa apontou sobre a relação do samba com questões mais amplas do cotidiano social. Como exemplo, destaco “Good-bye, boy” uma crítica à influência americana sobre o Brasil.

Good-bye, boy
“Good-bye, boy, good-bye, boy / Deixa a mania de inglês / Fica tão feio pra você / Moreno frajola / Que nunca freqüentou / As aulas da escola / Good-bye, good-bye, boy / Antes que a vida se vá / Ensinaremos cantando (com prazer) / A todo mundo: / Bê – é – bé, bê – i – bi, bê – a – bá / Não é mais boa noite, nem bom dia / Só se fala good morning, good night / Já se desprezou o lampião de querosene / Lá no morro só se usa luz da Light...”

João de Barro, o Braguinha (1907-), foi quem fez a letra de “Carinhoso” em parceria com Pixinguinha.
João de Barro foi o nome de um pássaro, escolhido por Carlos Alberto Ferreira Braga, conhecido pelos amigos como Braguinha, para se apresentar com o grupo musical que integrava, sem expor o nome da família, que dispunha de certo destaque social.
De todos os compositores citados, só Braguinha permanece vivo. Como os demais, também, marcou a década de 30 com grandes sucessos.
Foi o próprio compositor, quem destacou como as melhores produções de toda a sua atividade artística, as 45 histórias musicadas para crianças – disquinho – através da gravadora “Continental Discos”. Essas gravações eram feitas no estilo das radionovelas. Em pouco tempo, seu trabalho já se equiparava aos realizados pelos especialistas dos estúdios Disney. Uma de suas composições que, até os dias de hoje, ainda influenciam o imaginário infantil é “Pela Estrada, de Chapeuzinho Vermelho”:
“Pela estrada afora / eu vou bem sozinha / levar estes doces / para a vovozinha. / Ela mora longe, / o caminho é deserto / e o lobo mau / passeia aqui por perto.”

Paralelamente a esse trabalho, Braguinha continuava compondo músicas românticas e também carnavalescas.
Em 1938, entretanto, o país vivia a ditadura do Estado Novo, período em que foi criado o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) com o objetivo de promover a imagem do governo. Esse órgão governamental “aconselhava” os compositores a comporem canções com tipos bem comportados, defensores da ordem e do trabalho, em contrapartida ao gênero que vigorava até então, muito propenso a apologias da malandragem e da boemia.
Surge, assim, um estilo musical novo, o samba exaltação, com versos e melodias que destacavam o esplendor e as maravilhas do país, ou seja, com uma visão romântica e ufanista da realidade brasileira, que atendia ao gosto do governo e marcava o Estado Novo. O primeiro sucesso foi “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, depois “Brasil”, de Benedito Lacerda e Aldo Cabral e, em 1940, João de Barro lançou “Onde o céu é mais azul”.

Em 1946, Braguinha compôs “Copacabana” considerada como uma das precursoras da Bossa Nova, devido às novidades que trazia, cuja letra que destaco a seguir:

Copacabana
“Existem praias tão lindas, cheias de luz / Nenhuma tem o encanto que tu possuis / Tuas areias teu céu tão lindo / Tuas sereias sempre sorrindo / Copacabana, princesinha do mar / Pelas manhãs tu és a vida a cantar / E à tardinha ao sol poente / Deixas sempre uma saudade na gente / Copacabana o mar eterno cantor, / Ao te beijar ficou perdido de amor / E hoje vive a murmurar: / Só a ti Copacabana eu hei de amar.”

O aprimoramento tecnológico e a expansão da indústria fonográfica levaram ao declínio as músicas carnavalescas nos anos 50 e 60. A justificativa era o investimento sem grande retorno financeiro, por restringir-se apenas à época dos festejos. Para essas empresas, era muito mais lucrativo lançar músicas estrangeiras, das quais obtinham gravações originais das matrizes multinacionais.
Em 1979, esse compositor, que se julgava esquecido, há mais de uma década, foi surpreendido pela regravação de “Balancê”, por Gal Costa, com grande sucesso.
Também nos anos 70, Elis Regina regravou “Carinhoso”. Nos anos 80, Caetano Veloso regravou “Chiquita Bacana” e, em 1996, Djavan regravou “Sorri”, versão de Braguinha para a música “Smile”, de Charles Chaplin. Foi o ressurgimento do compositor que acreditava que suas músicas não voltariam a ser ouvidas nos rádios.
Realmente, já havia começado uma nova trajetória da música popular brasileira. O samba, ritmo que mereceu maior destaque nesse estudo, foi o rompimento com a influência do colonizador, o marco da música brasileira. Começou enaltecendo a malandragem e a boemia e chegou ao samba exaltação, por questões políticas. Alguns dos últimos tornaram-se verdadeiros hinos às belezas nacionais.
Essa nova trajetória chama-se bossa nova.
Em 1961, José Ramos Tinhorão fez um comentário sobre o novo movimento – a bossa nova -, que foi recebido como insulto pelos bossanovistas. Disse ele:
“Filha de aventuras secretas de apartamento com a música norte-americana – que é, inegavelmente sua mãe – a bossa nova, no que se refere à paternidade, vive até hoje o mesmo drama de tantas crianças de Copacabana, o bairro em que nasceu: não sabe quem é o pai.” (Tinhorão 1961 in Máximo e Neto, 1998 – O Globo – Segundo Caderno, p. 1 – 18/01/98)
Os insultados responderam:
“Como podia Tinhorão, um crítico respeitado, atrever-se a rotular daquela maneira a coisa mais importante acontecida na cultura do país desde a Semana de Arte Moderna em 1922?” (Máximo e Neto 18/01/98 – O Globo, Segundo Caderno, p. 1)
Toda a polêmica de paternidade e ano de nascimento da bossa nova deve-se ao fato de uns afirmarem que a bossa nova começou em janeiro de 1958, quando Elisete Cardoso gravou “Canção do amor demais”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, com João Gilberto no violão.
Outros afirmaram – a grande maioria – que começou em 1959, com o disco “Chega de saudade” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes) gravado por João Gilberto, o conhecido pai da Bossa Nova. Seguem as letras :
Chega de saudade
“Vai minha tristeza / E diz a ela / Que sem ela não pode ser / Diz-lhe numa prece / Que ela regresse / Porque eu não posso mais sofrer / Chega de saudade / A realidade / É que sem ela não há paz / Não há beleza / É só tristeza / E a melancolia / Que não sai de mim / Não sai de mim, não sai
Mas se ela voltar, se ela voltar / Que coisa linda, que coisa louca / Pois há menos peixinhos a nadar no mar / Do que os beijinhos / Que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços / Os abraços / Hão de ser milhões de abraços / Apertado assim / Colado assim / Calado assim / Abraços e beijinhos / E carinhos sem ter fim / Que é prá acabar com esse negócio / De viver longe de mim / Vamos deixar desse negócio / De você viver sem mim”

Canção do Amor Demais
“Quero chorar porque te amei demais / Quero morrer porque me deste a vida / Oh meu amor, será que nunca hei de ter paz / Será que tudo que há em mim / Só quer sentir saudade / E já nem sei o que vai ser de mim / Tudo me diz que amar será meu fim / Que desespero traz o amor / Eu nem sabia o que era o amor / Agora sei porque não sou feliz”

Não há em torno da bossa nova um consenso que lhe garanta a condição de movimento. Muitos são os que a explicam e diversas são as explicações, como constato a seguir:

Carlos Lyra (1998) disse que a bossa nova só se cristalizou em 59, com João Gilberto, e que,
“A bossa nova para mim não é um movimento, como a Tropicália ou o Cinema Novo e, sim, muito mais um surto de cultura que não pode ser dissociado da dimensão sócio-política, da riqueza propiciada pela era Juscelino Kubitschek.” (Lyra 1998 in Máximo e Neto – O Globo Segundo Caderno, 18/01/98, p. 2)
Sérgio Ricardo concorda com Lyra quanto ao não-movimento: “se não se sabe o que a bossa nova é, sabe-se o que não é: um movimento.” (Máximo e Neto – O Globo, 18/01/98, Segundo Caderno, p. 2) Ambos, compositores importantes da bossa nova.
Nara Leão, foi interprete e defensora da bossa nova, acompanhou toda essa polêmica e as acusações: de americanização da nossa música, alienação, muitas vezes descritiva, pouco crítica. Na continuidade desse processo, viu e participou do surgimento da bossa nova opinião, com o samba “Opinião” de Zé Kéti. Além de gravar essa canção, deu a seu disco o mesmo nome. Sobre esse trabalho deu o seguinte depoimento:
“Este disco nasceu de uma descoberta, importante para mim: a de que a canção popular pode dar às pessoas algo mais que distração e o deleite. A canção popular pode ajudá-las a compreender melhor o mundo onde vivem e a se identificarem no nível mais alto de compreensão.” (Nara Leão in Britto, 1966, p. 129)
O samba “Opinião”, de Zé Kéti, é um samba de protesto explícito, que fazia uma resistência ao processo de remoção das favelas, executada pelo governo do Estado da Guanabara – “Podem me prender / podem me bater / podem até deixar-me sem comer / que eu não mudo de opinião / daqui do morro eu não saio não.”– Ao cantar esse samba, declarou Nara:
“Além do amor e da saudade, pode o samba cantar a solidariedade, a vontade de uma vida nova, a paz e a liberdade. E quem sabe se, cantando essas canções, talvez possamos tornar mais vivos na alma do povo idéias e sentimentos que o ajudem a encontrar, na dura vida, o seu melhor caminho.” (Nara Leão in Britto, 1966, p. 130)

Mendes (1968), preocupando-se com a questão da influência norte-americana, apontada na bossa nova. Diz ele:

“Àqueles que consideram que a “bossa nova é jazz”, perguntamos: que espécie de jazz é esse cuja “batidinha” característica nenhum músico norte-americano consegue dar, e que, além disso, passou a influenciar a própria música norte-americana? Não havendo troca de informações, a arte resulta sem interesse, morta. A invenção artística deve somar as mais variadas experiências.” (Mendes in Campos, 1968, p. 126)

Regina Echeverria (1985), no livro “Furacão Elis”, descreve o cenário brasileiro em que surgiu e se desenvolveu a bossa nova. O presidente da era bossa nova foi Juscelino Kubitschek, num governo de afirmações nacionalistas, progresso e expansão econômica. O país sorria para si mesmo. O futebol ganhou a copa de 58, a primeira colocada em Wimbledon foi Maria Esther Bueno, Eder Jofre tornou-se campeão mundial dos pesos-galo, estava sendo construída a estrada Belém-Brasília e a nova capital era a euforia do desenvolvimento.
Sobre o presidente da bossa nova, Juscelino Kubitschek, Juca Chaves fez a seguinte sátira:

Presidente Bossa Nova
“Bossa nova mesmo é ser presidente / Desta terra descoberta por Cabral / Para tanto basta ser, tão simplesmente / Simpático, risonho, original / Depois desfrutar da maravilha / De ser o presidente do Brasil / Voar da Velhacap pra Brasília / Ver Alvorada e voar de volta ao Rio.
Voar, voar, voar, voar / Voar pra bem distante / Até Versalhes, onde duas mineirimhas / Valsinhas / Dançam como debutantes / Interessante! / Mandar parente a jato pro dentista / Almoçar com tenista campeão / Também poder ser um bom artista / Exclusivista / Tomando com Dilermano / Umas aulinhas de violão / Isto é viver como se aprova / É ser um presidente bossa nova / Bossa nova, muito nova / Nova mesmo / ultra nova.”

Diante de tanta polêmica, é em Brito (1968) que vislumbro realmente o processo de transformação ocorrido na música popular brasileira, com o advento da bossa nova. Diz o autor que, na música anterior, a melodia recebia ênfase exagerada, tudo girava em tordo dela. Para um maior entendimento dessa afirmativa, basta ver o que Brito diz sobre como ocorre essa relação, na bossa nova:
“Na bossa nova, procura-se integrar melodia, harmonia, ritmo e contraponto na realização da obra, de maneira a não se permitir a prevalência de qualquer deles sobre os demais, o que tornaria a composição justificada somente pela existência do parâmetro posto em evidência” (Brito in Campos, 1968, p. 18)
Nesse momento de transformações, o intérprete deixa de ser um prestador de serviço para a música, passa a ser parte dela. É “cantar sem procura de efeitos contrastantes, sem arroubos melodramáticos, sem demonstrações de afetado virtuosismo sem malabarismos” (Brito, 1968, p. 31).
Fica, assim, mais claro entender quando Antônio Carlos Jobim (Tom Jobim) afirma que a bossa nova não tem dono: “todos nós somos partes de um movimento que vem de longe. Ela vinha se definindo, se esboçando muito antes de ser batizada.” (Jobim apud Britto, 1966, p. 121)
Esse “movimento que vem de longe”, pontuado por Tom Jobim, foi investigado por Britto (1966), que revendo os anos 30, encontrou o poeta da vila, Noel Rosa que, segundo o autor, “constituiu exceção em seu tempo, como para nós, hoje, a bossa nova” (Britto, 1966, p. 116). Noel Rosa preocupava-se com o que estava compondo. Fazê-lo não era uma distração e, sim, uma necessidade. Era a vida tornando-se canção o cotidiano, o dia-a-dia cantado com linguagem simples e popular. Nas palavras de Britto:
“Foi assim que Noel Rosa descobriu a passagem das emboladas e canções sertanejas, típicas e exclusivamente regionalistas, para uma forma urbanizada de música popular. Deste modo nasceu o samba: como expressão nacional, configurando o Brasil na sua totalidade, muito mais do que as emboladas. Por isso, Noel Rosa representa no panorama da música popular brasileira a tradução do espírito modernista.” (ibid., p. 117)
Como foi dito em momento anterior neste texto, resgatando palavras do próprio Noel Rosa, eram influências boas e ruins sendo trocadas entre o morro e a cidade. Era a transformação do samba. Segundo Britto:
“As letras das composições de Noel Rosa traduziam as primeiras contradições entre o morro e a cidade, o subúrbio e o centro, a tristeza/alegria da favela e o individualismo x comércio dos primeiros edifícios. Sentindo essas iniciais oposições em forma de humor, de leve ironia, da mais moderna auto-ironia, da filosofia de vida de quem já tem uma opinião.” (ibid., p. 118)
Assim sendo, os pontos de convergências que aproximam Noel Rosa da bossa nova são destacados por Brito como: “simplicidade para comunicar as coisas como elas existem e se desfazem. O amor se buscando, amor se encontrando, amor se dissipando.” (ibid., p. 126).
Cabe, nesse momento, chamar atenção para um outro personagem da música popular brasileira, que também teve poucos anos de vida e grande sucesso: nasceu em 1930, quando Noel Rosa, começou a surgir no cenário nacional. Viveu até os vinte e nove anos, dois anos de vida a mais que Noel. Seu nome, Adiléa da Silva Rocha. Aos dezessete anos, adotou o pseudônimo de Dolores Duran, com o qual ficou conhecida e tornou-se um grande nome da MPB. Segundo Severiano e Mello (1998), a obra de Dolores Duran situa-se na fronteira da canção tradicional com a bossa nova, portanto, também uma precursora do movimento. É considerada uma das maiores letristas da música brasileira. “A Mulher – Canção”, ela se alimentava de música, diz a MPB Compositores (Dolores Duran, 1997, p. 28, 2). Essa observação lembra-me Chiquinha Gonzaga, que vivia para sua música.
Entretanto, não são só eles que devem ser apontados com esse mérito. Contamos ainda com Tito Madi, Johnny Alf e Dorival Caymmi.
Tito Madi classificava sua obra como a de Dolores Duran, um elo de união da música brasileira, entre o tradicional e a bossa nova. O ano de 1957 foi marcado por muitos de seus sucessos, como: “Chove Lá Fora” (valsa), “Gauchinha Bem Querer” (samba-canção) e “Quero-te Assim” (valsa).
Johnny Alf compôs “a mais bossa nova das músicas que antecederam a bossa nova”, segundo Severiano e Mello (1998). Era um samba denominado “Rapaz de Bem”. Esses autores, explicam ainda:
“passava a impressão que cada um – piano e cantor – seguiam direções diferentes. Sua concepção não era a do piano marcar o ritmo, mas emoldurar a voz, cercando a melodia.” (p. 324)
Dorival Caymmi surgiu no cenário da música popular, durante a Época de Ouro (1929/1945), mais precisamente, em 1939, com o samba “O que é que a baiana tem?”, interpretado por Carmem Miranda. Em 1940, o sucesso foi “O Samba de Minha Terra” que diz: “Quem não gosta de samba / bom sujeito não é / é ruim da cabeça / ou doente do pé”. Em 1941, foi a vez da canção “É Doce Morrer no Mar”, em parceria com Jorge Amado, escritor brasileiro de sucesso internacional. É ele, também, o mais indicado para falar sobre Caymmi, o compositor. Diz ele:
“Cada música sua é inspiração verdadeira e experiência vivida, é seu sangue e sua carne, é sua verdade. Uma será mais bela, outra mais profunda, aquela mais fácil, mas nenhuma resulta da busca do sucesso ou do aproveitamento de qualquer circunstância.” (Jorge Amado in Nova História da Música Popular Brasileira – Dorival Caymmi, 1976, p. 1)
Sobre o indicador de precursor da bossa nova, mais indicado se faz atentar para o parecer do próprio Dorival Caymmi. Diz ele:
“Cheguei aqui (Rio de Janeiro) com um violão tocado de maneira esquisita para a época. Diferente da usança comum. O violão era tocado então em acordes perfeitos, quadrados. Sempre tive tendência a alterar os acordes perfeitos. Eu tirava o dedo de uma corda e punha na outra procurando um som harmônico diferente.(...) As minhas “cavações” harmônicas já eram estranhas para meus amigos lá na Bahia.” (Caymmi in Nova História da Música Popular Brasileira – Dorival Caymmi, 1976, p. 7– grifo meu)
Assim, anos mais tarde, seria visto como mais um precursor da bossa nova.
De tudo isso, concluo que a bossa nova, foi a culminância de um processo em que compositores buscavam um novo som. Não entendo o radicalismo de Tinhorão, pontuando um único momento. Sinto clareza desse caminhar, desde os anos 30, o que não é um fato inédito na música popular. Para chegarem ao samba, os compositores brasileiros também viveram um processo, este, muito mais difícil, como consta nesse estudo. Não há quem aponte as reuniões da casa da tia Ciata, local de onde saiu o primeiro samba registrado, como aventuras secretas, no fundo de um quintal, e essas eram realmente secretas, acobertadas pelo choro executado na sala. Sobre as influências, a bossa nova teve o jazz, e o samba teve polcas, valsas, tangos, e muito mais. Assim sendo, tanto o samba, quanto a bossa nova, fazem parte do constante e crescente caminhar da Música Popular Brasileira.
Vinícius de Morais e Baden Powell, em 1964, fizeram para esse caminhar, o “Samba da Bênção”. Este samba é uma seqüência de homenagens, sem separações, divisões ou barreiras. Uma seqüência simples, do viver, da música, da mulher, da religiosidade, do povo com as mais diversas cores de pele, da brasilidade, do Brasil. Um samba que conta a história, reverenciando-a. Essa letra, embora longa, transcrevo a seguir, pois de alguma forma organiza uma síntese elucidativa da polêmica aqui discutida:

“É melhor ser alegre que ser triste / A alegria é a melhor coisa que existe / É assim como a luz no coração / Mas pra fazer um samba com beleza / É preciso um bocado de tristeza / Preciso um bocado de tristeza / Senão não se faz um samba não / Senão é como amar uma mulher só linda / E daí? Uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza / Qualquer coisa de triste / Qualquer coisa que chora / Qualquer coisa que sente saudade / Um molejo de amor machucado / Uma beleza que vem da tristeza de saber mulher / Feita apenas para amar / Para sofrer pelo seu amor / E pra ser só perdão / Fazer samba não é contar piada / Quem faz samba assim não é de nada / Um bom samba é uma forma de oração / Porque o samba é a tristeza que balança / E a tristeza tem sempre uma esperança / / A tristeza tem sempre uma esperança / De um dia não ser mais triste não / Feito essa gente que anda por aí brincando com a vida / Cuidado, companheiro! / A vida é pra valer / E não se engane não / Tem uma só / Duas mesmo que é bom, ninguém vai me dizer que tem / Sem provar muito bem provado / Com certidão passada em cartório do céu / E assinado embaixo: Deus / E com firma reconhecida! / A vida não é de brincadeira, amigo, / A vida é a arte do encontro / Embora haja tanto desencontro pela vida / Há sempre uma mulher à sua espera / Com os olhos cheios de carinho / E as mãos cheias de perdão / Ponha um pouco de amor na sua vida / Como no seu samba / Ponha um pouco de amor numa cadência / E vai ver que ninguém no mundo vence / A beleza que tem o samba, não / Porque o samba nasceu lá na Bahia / E se hoje ele é branco na poesia / Se hoje ele é branco na poesia / Ele é negro demais no coração / Eu, por exemplo, o capitão do mato Vinicius de Morais, / Poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil / Na linha direta de Xangô / Saravá! / A bênção, Senhora / A maior ialorixá da Bahia / Terra de Caymmi e João Gilberto / A bênção, Pixinguinha, / Tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor / A bênção, Sinhô / A bênção, Cartola / A bênção, Ismael Silva / Sua bênção, Heitor dos Prazeres / A bênção, Nélson Cavaquinho / A bênção, Geraldo Pereira / A bênção, meu bom Cyro Monteiro / Você, sobrinho de Nonô / A bênção, Noel / Sua bênção, Ary / A bênção, todos os grandes sambistas do meu Brasil / Branco, preto, mulato / Lindo com a pele macia de Oxô / A bênção, Maestro Antônio Carlos Jobim / Parceiro e amigo querido / Que já viajaste tantas canções comigo / E ainda há tantas a viajar / A bênção, Carlinhos Lyra / Parceiro cem por cento / Você que une a ação ao sentimento e ao pensamento / A bênção / / A bênção, Baden Powell / Amigo novo, parceiro novo / Que fizeste este samba comigo / A bênção, amigo / A bênção, Maestro Moacyr Santos, não és um só / És tantos, tantos como / O meu Brasil de todos os santos / Inclusive meu São Sebastião / Saravá! / A bênção, que eu vou partir / Eu vou ter que dizer adeus / Ponha um pouco de amor na cadência / E vai ver que ninguém no mundo vence / A beleza que tem um samba, não / Porque o samba nasceu lá na Bahia / E se hoje ele é branco na poesia / Se hoje ele é branco na poesia / Ele é negro demais no coração.”

Ainda em 64, quando a geração de novos compositores estava em seu apogeu, “a bossa nova deixava o amor, o sorriso e a flor para cair no social (...) Não se tinha a dimensão da ditadura que seria preciso enfrentar. Não se imaginava que a explosão aconteceria com o tropicalismo.” (Echeverria, 1981, p. 26)
Foi também em 64 que Roberto Carlos atingiu o grande momento de sua carreira. Era a “Jovem Guarda” marcando seu espaço em um país coisificado, onde o jovem passou a consumir valores, que o tempo denunciou como descartáveis. Entretanto, não é possível negar as emoções transmitidas por esses roqueiros. Era o que pode ser chamado de influência ingênua do rock.
Marinho (1994) diz que o rock é a estrela das gerações e propõe voltar o disco e “ouviver”. É o ouviver desse autor, que transcrevo abaixo, uma síntese bem humorada da pura ou ingênua realidade que eclodiu, em 1965, com o programa de TV “Jovem Guarda”.
“Lá está Celly Campello que quase virou Branca de Neve de tanto tomar banho de lua. Ronni Cord entrando nas matinês a 120 por hora. Demétrius com bronquite porque ficou meses na parada ao ritmo da chuva. E Sérgio Murilo entrando em órbita de tanto esperar a alienada marcianita que felizmente nunca teve alma, nem se materializou. Bom mesmo foi quando o Renato e Seus Blue Caps soltaram aquele capeta em forma de guri, com uma gatinha atrevida que convidava a menina pra brincar de amor. E o Roberto, conciliador dos tempos, mandou tudo para o inferno e liberou algumas notas reprimidas do corpo, segurando sempre uma ré na tradição. O grande mérito da jovem guarda, mesmo com a caligrafia certinha e as rimas sem borrões, foi escancarar os sentimentos e fazer do universo do corpo espaço de libertação do prazer. Por isso Wanderléia, de superminissaia, podia até parar o cotidiano dos cartórios deste país com um simples refrão dirigido ao senhor juiz: ‘Pare, agora’. E o Tremendão, armado de cowboy, mandava uma imagem de machão, mas não conseguia ser tão ‘mau, mau, mau’ assim, porque no subtexto o seu verdadeiro reduto era um colo de mulher.” (Marinho, 1994, in Linguagem e linguagens, série Idéias, v. 17, p. 29)
Segundo Campos (1968), a música “Quero que vá tudo pro inferno”, sucesso da jovem guarda, tinha um público basicamente infanto-juvenil. Uma composição de Roberto Carlos e Erasmo Carlos deu voz a um estado de espírito geral na atualidade brasileira (1965 –ditadura militar), alcançando a gente de todas as idades (Campos, 1968, p. 40). Não é essa a referência que guardo em minha memória. Em nenhum momento de minha vida, percebi essa música dar voz a um estado de espírito geral, mas tenho a clareza de que “desejar que tudo o mais vá para o inferno” era um indício de alienação. A jovem guarda era tida como símbolo da juventude alienada por aqueles que julgavam-se atentos ao momento histórico do país.
A década de 60 foi também marcada pelos festivais realizados pela TV Excelsior/TV Record; TV Rio/TV Globo. A primeira emissora iniciou a realização dos festivais em 1965 e encerrou na mesma década, 1969. Era o “Festival da Música Popular Brasileira”. A segunda – TV Rio/TV Globo – iniciou, em 1966, e adentrou a década seguinte, terminando, em 1972. Chamava-se “Festival Internacional da Canção”.
Destacarei momentos importantes dessa época de festivais, a partir da minha experiência de espectadora. Aqui não existe um critério de avaliação que aponte o melhor ou o pior: foram todos eventos importantes para a MPB. O que me proponho é a destacar aqueles que mobilizaram grande número de espectadores e torcedores, fato esse que não ocorreu com os últimos festivais – limitaram-se a ser mais um dos programas da TV.

Festival da Música Popular Brasileira, realização TV Record.

1º -Em 1965 foi realizado pela TV Excelsior e nos anos seguintes, respeitando o mesmo nome, pela TV Record. Venceu Arrastão de Edu Lobo e Vinícius de Moraes. A música foi interpretada por Elis Regina. Segundo Passos (1972), foi cantando essa canção, “que Elis conquistou a autêntica consagração e o seu definitivo encontro com a fama e a popularidade.” (Passos, 1972, p. 212)
Desde o ano anterior ao festival, novos rumos estavam sendo seguidos pelo pessoal da bossa nova. Segundo Severiano e Mello (1998), Edu Lobo escolheu um caminho realista, que misturava protesto social e regionalismo, como asperezas da música nordestina. Vinicius de Moraes fez a letra, focalizando uma pescaria, com puxada de rede e misticismo. Consta, também, que “Arrastão” “funcionou como uma espécie de divisor de águas entre a bossa nova e um tipo de música inicialmente chamada de “música popular moderna”, ou MPM. Esta sigla depois seria impropriamente trocada por MPB.” (Severiano e Mello, 1998, p. 83). MPB sempre significou Música Popular Brasileira, independentemente de ser moderna ou antiga.

Arrastão

“Eh! Tem jangada no mar... / Eh! Hoje tem arrastão, / Eh! Todo o mundo pescar, / Chega de sombra João, J’ouviu... / Olha o arrastão entrando no mar sem fim / Eh! Meu irmão me traz Iemanjá pra mim, / Nhã Santa Bárbara, me abençoai, / Quero me casar com Janaína... / Eh! Puxa bem devagar / Eh! Já vem vindo o arrastão, / Eh! Todo o mundo pescar, / Eh! Vem na rede João, pra mim... / Valha-me meu Nosso Senhor do Bonfim / Nunca jamais se viu tanto peixe assim...”

2º Festival da Música Popular Brasileira – 1966

1ª colocada: “A banda” de Chico Buarque de Holanda, interpretada por ele e Nara Leão.

2ª colocada: “Disparada” de Geraldo Vandré e Theo de Barros, interpretada por Jair Rodrigues.

Para evitar conflitos entre torcedores, os organizadores do evento declararam-nas empatadas no primeiro lugar. Difícil, também, é determinar qual das vencedoras devo destacar. É justamente o contato com as letras que mostrará o porquê da dificuldade:

A Banda

“Eu estava à toa na vida / O meu amor me chamou / Pra ver a banda passar / Cantando coisas de amor / A minha gente sofrida / Despediu-se da dor / Pra ver a banda passar / Cantando coisas de amor.
O homem sério que contava dinheiro, parou / O faroleiro que contava vantagens, parou / A namorada que contava as estrelas, parou / Para ver, ouvir e dar passagem / A moça triste que vivia calada, sorriu / A rosa triste que vivia fechada, se abriu / E a meninada toda se assanhou / Pra ver a banda passar / Cantando coisas de amor.
O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou / Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou / A moça feia debruçou na janela / Pensando que a banda tocava pra ela / A marcha alegre, se espalhou na avenida insistiu / A lua cheia que vivia escondida surgiu / Minha cidade toda se enfeitou / Pra ver a banda passar / Cantando coisas de amor.
Mas pra meu desencanto, o que era doce acabou / Tudo tomou seu lugar, depois que a banda passou / E cada qual no seu canto, em cada canto uma dor / Depois da banda passar, cantando coisas de amor.”

Essa letra, de uma marcha, mostra um povo sofrido, nas mais diversas faixas etárias. No ano de 1966, o Brasil estava em plena ditadura militar. A letra destaca que cansaço, dor, tristeza, e tudo o mais de ruim que possa estar acontecendo é interrompido e transformado, no tempo de duração de uma canção. Fica marcado, mas não dito, o viver do povo brasileiro, cantado em tantas outras canções: – o povo que trabalha o ano inteiro, para brincar o carnaval, a maior festa popular da nação, período envolvido por música, portanto, tomado de alegria. Mas, como a banda, também passa. Depois que a banda passou tudo tomou seu lugar. A cidade que se enfeitou é, certamente de interior. Percebo um saudosismo, como se a canção retratasse um fato ocorrido em um passado distante.

Disparada

“Prepare seu coração pras coisas que eu vou contar / Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão / Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar / Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar / E a morte, o destino, tudo. A morte, o destino, tudo / Estava fora de lugar, eu vivo pra consertar / Na boiada já fui boi, mas um dia me montei / Não por um motivo meu ou de quem comigo houvesse / Que qualquer querer tivesse, porém por necessidade / Do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu / Boiadeiro muito tempo, laço firma, braço forte / Muito gado, muita gente pela vida seguirei / Seguia como num sonho e boiadeiro era um rei / Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo / E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando / As visões se clareando, até que um dia acordei / Então não pude seguir, valente, lugar tenente / E o dono de gado e gente, porque gado a gente marca / Tange, ferra, engorda e mata / Mas com gente é diferente / Se você não concordar não posso me desculpar / Não canto pra enganar, vou pegar minha viola / Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar / Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei / Não por mim nem por ninguém / Que junto comigo houvesse / Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu / Por qualquer coisa de seu, querer mais longe que eu / / Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo / E já que um dia montei, agora sou cavaleiro / Laço firme, braço forte, de um reino que não tem rei.”

Esta letra difere da canção anterior, em que só existe felicidade para o povo, enquanto dura uma canção. “Disparada” mostra um cantar revolucionário, protesta contra a alienação, a repressão e o poder pelo poder. Mostra, com clareza, o processo de transformação vivido por um homem, até então, alienado em seu tempo(portanto, objeto) em sujeito, atento, consciente dos seus direitos, em um reino que não tem rei, mas ele, enquanto sujeito-histórico, sabe exatamente o que quer, é verdadeiro, e, se isso não agradar não se desculpará.

3º Festival da Música Popular Brasileira –1967

1ª colocada: Ponteio, de Edu Lobo e Capinam

2ª Domingo no Parque, de Gilberto Gil interpretada por Gil e os Mutantes

3ª Roda Viva, de Chico Buarque

4ª Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, interpretada por Caetano e o conjunto Argentino Beat Boys.

Destacarei a letra da 3ª colocada. As letras da 2a e 4a serão apresentadas no momento em que falar do “Tropicalismo”, que começou exatamente nesse Festival da Música Popular Brasileira. A primeira colocada, Ponteio, de Edu Lobo e Capinam é uma canção inovadora, do ponto de vista rítmico. Segundo Passos (1972), esta composição demonstra que Edu Lobo, embora carioca de nascimento, sofre uma decisiva influência da música nordestina, em particular, de Pernambuco, onde nasceu seu pai, Fernando Lobo, também compositor e escritor com inúmeras publicações. Entretanto, a terceira colocada, Roda Viva, segundo Severiano e Mello (1998), fez realmente sucesso, com a peça homônima, em 1968, “quando a radicalização da ditadura caminhava para a edição do AI-5, Roda Viva gerou uma intensa reação de grupos de direita ligados ao regime, que culminou com a agressão aos atores e a destruição dos cenários no Teatro galpão, em Porto Alegre, em 17.7.68.” (Severiano e Mello, 1998, p. 115) Nesse momento, os atores foram colocados em um ônibus e enviados para São Paulo, com recomendação de lá ficarem.

Roda Viva

“Tem dias que a gente se sente / como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente, / ou foi o mundo então que cresceu / A gente quer ter voz ativa, / no nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda viva / e carrega o destino pra lá.
Roda mundo, roda gigante, / roda moinho roda peão / O tempo rodou num instante / nas voltas do meu coração.
A gente vai contra corrente / até não poder resistir / Na volta do barco é que sente / o quanto deixou de cumprir / Faz tempo que a gente cultiva / a mais linda rosa que há / Mas eis que chega a roda viva / e carrega a roseira pra lá.
A roda da saia, a mulata, / não quer mais rodar, não senhor / Não posso fazer serenata, / a roda de samba acabou.
A gente toma a iniciativa, / viola na rua a cantar / Mas eis que chega a roda viva / e carrega a viola pra lá.
O samba, a viola, a roseira, / um dia a fogueira queimou / Foi tudo ilusão passageira / que a brisa primeira levou / No peito a saudade cativa, / faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda viva / e carrega a saudade pra lá.”

Ainda segundo Severiano e Mello (1998), “Roda Viva é uma longa e muito bem elaborada composição, com uma melodia soturna que realça e complementa o pessimismo fatalista do poema.” (p. 115)

4º Festival da Música Popular Brasileira - 1968.

O júri foi dividido em dois: erudito e popular.

O júri erudito classificou:

1ª colocada: São Paulo, Meu Amor, de Tom Zé

2ª colocada: Memórias de Marta Saré, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri

3ª colocada: Divino Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

O júri popular classificou:

1ª colocada: Bem Vinda, de Chico Buarque

2ª colocada: a mesma do júri erudito

Nenhuma dessas canções se destacou, como aconteceu com as canções vencedoras do Festival Internacional da Canção, realizado no Rio de Janeiro, pela TV Globo, nesse mesmo ano. Entretanto, aconteceu um fato marcante na MPB, independente dos festivais. Uma composição de Marcos Vale e Paulo Sérgio Vale, “Viola Enluarada”, uma canção de protesto teve sucesso instantâneo. Antes de ser gravada, já existia lista de pedidos dos lojistas. Segundo Severiano e Mello (1998), “ao contrário de outras músicas de protesto, em que o êxito se baseia quase tão somente na força da letra, ‘Viola Enluarada´ possui, além dos belos versos literários, uma rica melodia, que a classifica entre as grandes canções brasileiras do século.” (Severiano e Mello, 1998, p. 134). Por esse motivo, optei por destacar essa letra a seguir.

Viola Enluarada

“A mão que toca um violão / Se for preciso faz a Guerra / Mata o mundo, fere a Terra.
A voz que canta uma canção / Se for preciso canta um hino / Louva a Morte
Viola em noite enluarada / No sertão é como espada / Esperança de vingança.
O mesmo pé que dança o samba / Se preciso, vai à luta / capoeira.
Quem tem de noite a companheira / Sabe que a paz é passageira / Pra defendê-la se levanta / E grita “Eu Vou”.
A Mão – Violão – Canção - Espada / E Viola enluarada / Pelo campo e cidade / Porta - Bandeira, Capoeira / Desfilando vão cantando / Liberdade!”

5º e último Festival da Música Popular Brasileira - 1969.
Foi proibido o uso de guitarras elétricas.
Venceu “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola. É classificada como uma discreta canção de protesto, por Severiano e Mello (1998, p. 145).A letra transcrevo a seguir.

Sinal Fechado

“Olá, como vai? / Eu vou indo, e você, tudo bem? / Tudo bem, eu vou indo correndo / Pegar meu lugar no futuro. / E você? / Tudo bem, eu vou indo em busca de um sono / Tranqüilo, quem sabe? / Quanto tempo... / Pois é, quanto tempo... / Me perdoe a pressa / É a alma dos nossos negócios / Oh! não tem de quê / Eu também só ando a cem / Quando é que você telefona? / Precisamos nos ver por aí / Pra semana, prometo, talvez / Nos vejamos quem sabe? / Quanto tempo... / Pois é, quanto tempo...Tanta coisa que eu tinha a dizer / Mas eu sumi na poeira das ruas / Eu também tenho algo a dizer / Mas me foge a lembrança / Por favor telefone, preciso beber / Alguma coisa rapidamente / Pra semana... / O sinal... / Eu procuro você... / Vai abrir, vai abrir... / Prometo não esqueço / Por favor, não esqueça, não esqueça, não esqueça / Adeus...”

Nesse período estavam fora do país: Gilberto Gil e Caetano, em Londres, Chico Buarque, em Roma, e Edu Lobo, em Los Angeles.

1º Festival Internacional da Canção- 1966 - realização da TV Rio. Os seguintes, respeitando o mesmo nome, foram realizados pela TV Globo.

1ª colocada: Saveiros, de Dori Caymmi e Nelson Mota, interpretada por Nana Caimmy

2ª colocada: O Cavaleiro, de Tuca e Vandré, interpretada por Tuca.

3ª colocada: Dia das Rosas, de Luiz Bonfá e Maria Helena Toledo, interpretada por Maísa.

Essas canções não se destacaram do mesmo modo que as vencedoras, do festival de São Paulo, no mesmo ano. Faço, então, uso desse espaço, para destacar uma canção que alcançou grande sucesso naquele ano. Uma canção que Luís Gonzaga, o rei do baião, gostaria de ter composto (ver abaixo). Segundo Gilberto Gil, autor da canção, “Luís Gonzaga é tão emocionante como Caymmi e João Gilberto.” (Gil in Campos, 1968, p. 180). Transcrevo a letra de “Procissão”, que, segundo seu autor, “é uma canção bem ao gosto do CPC, o Centro Popular de Cultura, solidária a uma interpretação marxista da religião, vista como o ópio do povo e fator de alienação da realidade, segundo o materialismo dialético.” (Gil in Severiano e Mello, 1998, p. 102)

Procissão

“Olha, lá vai passando a procissão / Se arrastando que nem cobra pelo chão / As pessoas que nela vão passando / Acreditam nas coisas lá do céu / As mulheres cantando tiram versos / Os homens escutando tiram o chapéu / Eles vivem penando aqui na terra / Esperando o que Jesus prometeu / E Jesus prometeu coisa melhor / Prá quem vive nesse mundo sem amor / Só depois de entregar o corpo ao chão / Só depois de morrer neste sertão /Eu também estou do lado de Jesus / Só que acho que ele se esqueceu / De dizer que na terra a gente tem / Que arranjar um jeitinho pra viver / Tanta gente se arvora a ser Deus / E promete tanta coisa pro sertão / Que vai dar um vestido pra Maria / E promete um roçado pro João / Entra ano e sai ano e nada vem /E o sertão continua ao Deus dará / Mas se existe Jesus no firmamento, cá na terra isso tem que se acabar”
Após a transcrição da letra de Procissão, sinto necessidade de melhor esclarecer o porque Luís Gonzaga gostaria de tê-la composto. Faço isso, transcrevendo parte de uma conversa que o rei do baião teve com Gilberto Gil:

“Puxa, Gil, como eu gostaria de ter feito essa música. Agora, você sabe, nêgo, uma coisa, eu não tive nem o curso primário. Você é um cara formado, você pode dizer essas coisas. Eu queria dizer essas coisas mas não sabia, eu não tinha estudo, eu não sabia jogar com as idéias. E tinha uma outra coisa. Vocês hoje reclamam, vocês falam da miséria que existe no Nordeste, da falta de condições humanas. Eu não podia, eu falava veladamente, eu era muito comprometido, muito ligado à Igreja no Nordeste. Eu tinha compromissos com os coronéis, com os donos de fazendas, que patrocinavam as minhas apresentações. Eles eram o meu sustento. Eu não podia falar muito mal deles.” (Gilberto Gil in Campos, 1968, p. 180)

Esse homem simples foi o porta-voz da cultura marginalizada do Nordeste. Ainda, segundo Gil, “Luís Gonzaga fez com a música nordestina, que era até então apenas folclore, coisas das feiras, dos cantadores, ao nível da cultura popular não massificada, não industrializada - exatamente o que João Gilberto fez com o samba.” (Gil in Campos, 1968, p. 79)
Após destacar o grande sucesso que foi a canção “Procissão”, uma espécie de baião estilizado, e ter feito dessa apresentação um espaço para chamar a atenção para mais um dos grandes personagens de história da música brasileira - Luís Gonzaga, sinto também necessidade de dar um maior esclarecimento sobre o CPC – Centro Popular de Cultura – citado por Gilberto Gil:
A UNE, União Nacional dos Estudantes, desejosa de um processo de descentralização de sua ação política, via na atividade artística a possibilidade de chegar mais rapidamente à massa estudantil. Criou, então, o CPC que tinha por objetivo colocar o homem do povo em evidência e em discussão. Para este fim o recurso mais eficiente foi a UNE - Volante que segundo Lima e Arantes (1984) era:
“uma caravana de 20 a 25 pessoas, composta de membros da diretoria da UNE e do Centro Popular de Cultura, que percorreu todas as capitais do país à exceção de São Paulo, Niterói e Cuiabá, permanecendo de 3 a 5 dias em cada capital, sob o lema geral de: A UNE veio para unir” (p. 21)
Enquanto os dirigentes da UNE participavam de assembléias e reuniões estudantis, o CPC da UNE fazia apresentações de peças teatrais, como por exemplo, a peça “Revolução na América Latina” de Augusto Boal, que denunciava a espoliação imperialista a que estavam submetidos os países dessa região. Também a canção “O Subdesenvolvido” de Carlos Lyra e Francisco de Assis, marcava esses encontros. Para efeito de ilustração, transcrevo um fragmento desta letra acompanhado de uma das paródias que se somavam a ela, conforme consta na memória da geração pós-CPC.
Canção:

“...O povo brasileiro embora pense / Dance e cante como americano / Não come como americano / Não bebe como americano / Vive menos, sofre mais / Isso é muito importante / Muito mais do que importante / Pois difere o brasileiro dos demais / Personalidade, personalidade, personalidade / Sem igual / Porém / Subdesenvolvida / Subdesenvolvida / Essa é que é a vida nacional.

Subdesenvolvido / subdesenvolvido / subdesenvolvido / subdesenvolvido...

Paródia:“

Leite em pó, leite em pó que tu me deste / pra matar essa fome do nordeste / leite em pó, coca-cola e chicletes / tudo isso da aliança para o progresso”.

Subdesenvolvido / subdesenvolvido / subdesenvolvido / subdesenvolvido...

Ao final de dois anos já havia 12 CPCs nas principais capitais do país. O CPC da UNE é considerado um marco na cultura brasileira. “Lançou sementes que muito contribuíram para o futuro teatro político, para a música de protesto e para o cinema novo.” (Lima e Arantes, 1984, p. 21)
Após este breve recorte de esclarecimento, retorno aos relatos sobre os festivais.

2º Festival Internacional da Canção – 1967

1ª colocada: Margarida, de Guarabira, interpretada pelo autor.

2ª colocada: Travessia, de Milton Nascimento e Brant, interpretada por Milton.

3ª colocada: Carolina, de Chico Buarque, interpretada por Cinara e Cibele.

Segundo Passos (1972), esse festival foi o “responsável pelo lançamento de uma extraordinária personalidade no mundo da nossa moderna música popular.” (Passos, 1972, p. 95). Seu nome – Milton Nascimento - e a canção que destaco é “Travessia”.

Travessia
“Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver / Forte eu sou, mas não tem jeito / Hoje eu tenho que chorar / Minha casa não é minha / E nem é meu esse lugar / Estou só e não resisto / Muito tenho pra falar.

Solto a voz nas estradas / já não quero parar / Meu caminho é de pedra / Como posso sonhar? / Sonho feito de brisa / Vento vem terminar / Vou fechar o meu pranto / Vou querer me matar.

Vou seguindo pela vida / Me esquecendo de você / Eu não quero mais a morte / Tenho muito que viver / Vou querer amar de novo / E se não der não vou sofrer / Já não sonho, hoje faço, / Com meu braço o meu viver..”

A idéia inicial de Milton era uma letra falando de um vendedor de sonho, “no entanto, Fernando Brant preferiu criar uma letra diferente sobre o rompimento de um namoro e a experiência de superar esta situação.” (Severiano e Mello, 1998, p. 116). Milton aprovou, e foi sua interpretação que lhe deu o prêmio de melhor intérprete do festival.

3º Festival Internacional da Canção – 1968

1ª colocada: Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, interpretada por Cinara e Cibele.

2ª colocada: Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré, interpretada pelo autor.

3ª colocada: Andança, de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, interpretada por Beth Carvalho e Golden Boys.

Todos os festivais geravam polêmicas. Existiam os mais diversos interesses, principalmente políticos, que dispunham do recurso da censura. Mas, no festival de 1968, o público elegeu como melhor música, a 2a colocada “Pra não dizer que não falei de flores”, e “Sabiá”, a 1a colocada foi vaiada. Nesse mesmo festival, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram desclassificados na eliminatória, realizada em São Paulo, e Caetano fez o seguinte discurso, enquanto o público vaiava: “Esta é a juventude que diz que vai tomar o poder? (...) Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos.” (Caetano apud Echeverria, 1985, p. 286)
Segundo Sérgio Augusto, em matéria publicada no jornal O Globo, em 26/09/98 – Segundo Caderno, p. 1 e 4, o Maracanãzinho tinha 25 mil pessoas. Diante das televisões, outros milhões. Parecia significar a Copa do Mundo da música popular brasileira. O país vivia uma ditadura militar que pioraria nos meses e anos seguintes.
Quando foi anunciada a classificação, o público vaiou intensamente, impedindo a reapresentação da canção vencedora. Nesse momento, Vandré vai ao microfone e faz um apelo: “Gente, por favor, um minuto só. Vocês não me ajudam desrespeitando Jobim e Chico. A vida não se resume em festivais.” (Vandré, Maracanãzinho, 29/09/68)
Vandré perdeu mais do que um festival. Foi perseguido pelos militares. Sua canção foi censurada, portanto, proibida. Exilou-se. Quando retornou ao país, foi obrigado pela ditadura militar a fazer uma humilhante retratação na TV.
Termino esse breve resgate do histórico festival de 68, transcrevendo o último parágrafo da matéria de Sérgio Augusto (26/09/98):
“Até hoje há quem suspeite que tudo teria sido muito diferente se a platéia que lotou o Maracanãzinho não tivesse se comportado de forma tão histérica, intolerante e maniqueísta, tão politicamente correta e, ao mesmo tempo, tão politicamente ingênua. E, o que é o pior de tudo, tão musicalmente medíocre.” (Sérgio Augusto – O Globo – Segundo Caderno, 26/09/98, p. 4).
Não conheço Sérgio Augusto, mas, certamente, não era um jovem em 68, caso contrário, daria maiores explicações, tais como: a música classificada em segundo lugar era a que mais expressava o sentimento dos jovens da época, que lutavam por uma pátria livre e soberana, motivos que os impulsionava a falar, denunciar. Mesmo sendo “Sabiá” uma obra de arte, no cenário da música, e abordando o mesmo tema de “Caminhando”! –como ficou conhecida, a segunda colocada os jovens não buscavam belos arranjos, belos versos. Buscavam, sim, cumplicidade na luta. E a encontraram na letra de “Pra não dizer que não falei de flores.”
Transcrevo, a seguir a letra de “Caminhando (Pra Não Dizer que Não Falei de Flores)”,um canto político-revolucionário.
Caminhando

“Caminhando e cantando / E seguindo a canção / Somos todos iguais braços dados ou não / Nas escolas, nas ruas, campos, construções / Caminhando, cantando e seguindo a canção / Pelos campos a fome em grandes plantações / Pelas ruas marchando indecisos cordões / Inda fazem da flor seu mais forte refrão / E acreditam nas flores vencendo o canhão / Vem vamos embora que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora não espera acontecer / Há soldados armados amados ou não / Quase todos perdidos de armas na mão / Nos quartéis lhes ensinam antigas lições / De morrer pela pátria e viver sem razões / Os amores na mente, as flores no chão / A certeza na frente, a história na mão / Caminhando e cantando e seguindo a canção / Aprendendo e ensinando uma nova lição / Vem, vamos embora que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora não espera acontecer.”

4º Festival Internacional da Canção – 1969

1ª colocada: Cantiga por Luciana, de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, interpretada por Evinha.

2ª colocada: Juliana, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, interpretada por Brazuca.

3ª colocada: Visão Geral, de César Costa, Rui Mauriti e Ronaldo Monteiro, interpretada por César Costa e 004.
Desse festival, apenas a primeira colocada esteve dentre os sucessos do ano, mesmo assim, fez menos sucesso que “Andança”, dos mesmos compositores juntamente com Danilo Caymmi, terceira colocada, no festival do ano anterior.

5º Festival Internacional da Canção – 1970

1ª colocada: BR3, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, interpretada por Tony Tornado e Trio Ternura.

2ª colocada: O amor é o meu país, de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro, interpretada por Ivan Lins.

3ª colocada: Encouraçado, de Sueli Costa e Tite de Lemos, interpretada por Fábio.

4ª colocada: Um abraço terno em você, viu mãe? de Luiz Gonzaga Júnior, interpretada pelo autor.

Nesse festival são classificados dois compositores, ainda não citados nesse trabalho, que são grandes nomes da MPB: Ivan Lins e Luiz Gonzaga Júnior, este último já falecido, o que não significa que suas composições tenham perdido a proximidade com o presente do país.
Outro fato importante é que o nome feminino passa a ocupar, além do espaço de intérprete, o de compositor: classificada em 3o lugar, Sueli Costa.

Destaco a letra da canção classificada em segundo lugar:
O Amor ao Meu País

“Eu queria / Eu queria / Eu queria / Um segundo lá no fundo de você / Eu queria me perder / oh! me perdoa / Porque eu ando / àtoa sem chegar / “Quão” mais longe / Se torna o cais Lindo é voltar / É difícil meu caminhar / Mas vou tentar / Não me importa / Qual seja a dor / Nem as pedras que eu vou pisar / Não me importo se é pra chegar / Eu sei, eu sei / De você fiz o meu país / Vestindo festa e final feliz / Eu fiz, eu fiz / O amor é o meu país / Eu fiz, o amor é o meu país.”

6º Festival Internacional da Canção – 1971

1ª colocada: Kiriê, de Paulinho Soares e Marcelo Silva, interpretada pelo “Trio Ternura”.

Esse festival foi marcado por “boatos”, censura e abandono à competição, como consta no livro “Furacão Elis”:
“Correu boato de que artistas como Chico Buarque (já de volta ao Brasil) Tom Jobim, Edu Lobo e Paulinho da Viola aproveitariam a transmissão ao vivo, para protestar contra a censura. As autoridades tomaram providências e eles acabaram se retirando.” (Echeverria, 1985, p. 289)
A canção vencedora não alcançou maior destaque além do título de campeã do festival de 1971. Entretanto, neste mesmo ano, independente deste evento, fez grande sucesso a canção “Construção” uma composição de Chico Buarque, considerada por Severiano e Mello (1998), uma obra-prima da música popular brasileira. Estes autores dizem, ainda que:
“Nessa letra moderna e requintada, o autor emprega ousados processos de construção poética como, por exemplo, a alternância das proparoxítonas finais, como se fossem peças de um jogo num tabuleiro.”
A letra que ora transcrevo, conta o último dia de trabalho de um operário que morre no exercício da profissão.
Construção

“Amou daquela vez como se fosse a última / Beijou sua mulher como se fosse a última / E cada filho seu como se fosse o único / E atravessou a rua com seu passo tímido / Subiu a construção como se fosse máquina / Ergueu no patamar quatro paredes sólidas / Tijolo com tijolo num desenho mágico / Seu olhos embotados de cimento e lágrima / Sentou pra descansar como se fosse sábado / Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe / Bebeu e soluçou como se fosse um naufrago / Dançou e gargalhou como se ouvisse música / E tropeçou no céu como se fosse um bêbado / E flutuou no ar como se fosse um pássaro / E se acabou no chão feito um pacote flácido / Agonizou no meio do passeio público / Morreu na contra – mão atrapalhando o tráfego... / Amou daquela vez como se fosse o último / Beijou sua mulher como se fosse a única / E cada filho seu como se fosse o pródigo / E atravessou a rua com seu passo bêbado / Subiu a construção como se fosse sólido / Ergueu no patamar quatro paredes mágicas / Tijolo com tijolo num desenho lógico / Seus olhos embotados de cimento e tráfego / Sentou pra descansar como se fosse um príncipe / Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo / Bebeu e soluçou como se fosse máquina / Dançou e gargalhou como se fosse o próximo / E tropeçou no céu como se ouvisse música / E flutuou no ar como se fosse sábado / E se acabou no chão feito um pacote tímido / Agonizou no meio do passeio náufrago / Morreu na contra – mão atrapalhando o público... / Amou daquela vez como se fosse máquina / Beijou sua mulher como se fosse lógico / Ergueu no patamar quatro paredes flácidas / Sentou pra descansar como se fosse um pássaro / E flutuou no ar como se fosse um príncipe / E se acabou no chão como um pacote bêbado / Morreu na contra – mão atrapalhando o sábado...

7 º e último Festival Internacional da Canção – 1972

1ª colocada: Diálogo, de Baden Pawell e Paulo César Pinheiro, interpretada por Baden Pawell.

2ª colocada: Fio Maravilha, de Jorge Bem, interpretada por Maria Alcina.

Esse festival esteve completamente esvaziado de concorrentes e também de público.
Cabe neste momento esclarecimento sobre as fontes pesquisadas sobre os festivais. Em Passos (1972), encontrei referências aos Festivais Internacionais da Canção, realizados de 1966 a 1970, no Rio de Janeiro. Os dois anos seguintes e os Festivais da Música Popular Brasileira, realizados em São Paulo, foram resgatados em Echeverria (1985), nos estudos cronológicos, fruto da pesquisa realizada por Maria Luiza Kfouri (p. 277-312).
Conforme já anunciado, o movimento “Tropicalismo” surgiu em 1967, durante o Festival da Música Popular Brasileira realizado pela TV Record no Estado de São Paulo. Foram classificadas em segundo e quarto lugares as canções: Domingo no Parque, de Gilberto Gil, e Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, letras que destaco a seguir:
Domingo no Parque

“O rei da brincadeira (Ê, José) / O rei da confusão (Ê, João) / Um trabalhava na feira (Ê, José) / Outro na construção (Ê, João) / A semana passada, no fim da semana / João resolveu não brigar / No Domingo de tarde saiu apressado / E não foi pra Ribeira jogar / Capoeira / Não foi pra lá, pra Ribeira, foi namorar / O José como sempre no fim da semana / Guardou a barraca e sumiu / Foi fazer no Domingo um passeio no parque / Lá perto da Boca do Rio / Foi no parque que ele avistou / Juliana, foi que ele viu / foi que ele viu / Juliana na roda com João / Uma rosa e um sorvete na mão / Juliana seu sonho, uma ilusão / juliana e o amigo João / O espinho da rosa feriu Zé / E o sorvete gelou seu coração / O sorvete e a rosa (Ô, José) / A rosa e o sorvete (Ô, José) / Foi coçando no peito (Ô, José) / Do José brincalhão (Ô, José) / O sorvete e a rosa (Ô, José) / A rosa e o sorvete (Ô, José) / Oi, girando na mente (Ô, José) / / Do José brincalhão (Ô José) / Juliana girando (Ô, girando) / Oi, na roda gigante (Ô, girando) / Oi, na roda gigante (Ô, girando) / O amigo João (Ô, João) / O sorvete é morango (É vermelho) / Oi, girando e a roda (É vermelha) / Oi, girando, girando (É vermelha) / Oi, girando, girando... / Olha a faca! (Olha a faca!) / Olha o sangue na mão (ê, José) / Juliana no chão (Ê, José) / outro corpo caído (Ê, José) / Seu amigo João (Ê, José) / Amanhã não tem feira (Ê, José) / Não tem mais construção (Ê, João) / Não tem mais brincadeira (Ê, José) / Não tem mais confusão (Ê, João)”

A música Domingo no Parque é inovadora em vários aspectos, segundo Severiano e Mello (1998): “a composição procura fundir musicalmente o tradicional / nordestino com o pop / internacional, enquanto, poeticamente, utiliza uma forma cinematográfica de narração” (p.110)
Alegria, Alegria

“Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento / No sol de quase dezembro, eu vou / O sol se reparte em crimes, espaçonaves, guerrilhas / Em Cardinales bonitas, eu vou / Em caras de presidentes, em grandes beijos de amor / Em dentes, pernas, bandeiras, / bomba e Brigite Bardot / O sol nas bancas de revista me enche de alegria e preguiça / Quem lê tanta notícia / Eu vou por entre fotos e nomes os olhos cheios de cores / O peito cheio de amores vãos / Eu vou, por que não? Por que não? / Ela pensa em casamento, e eu nunca mais fui à escola / Sem lenço, sem documento, eu vou / Eu tomo uma coca- cola, ela pensa em casamento / E uma canção me consola, eu vou / Por entre fotos e nomes, / sem livros e sem fuzil / Sem fone e sem telefone / no coração do Brasil / Ela nem sabe, até pensei em cantar na televisão / O sol é tão bonito / Eu vou sem lenço, sem documento, / nada no bolso ou nas mãos / Eu quero seguir vivendo, amor / Eu vou, por que não? Por que não? / Por que não? / Por que não? / Por que não?”

Segundo Severiano e Mello (1998), essa canção foi composta num estilo cinematográfico- descritivo como “Domingo no Parque”. Conta a caminhada de um transeunte pelas ruas de uma grande cidade, só que na composição o passeio tem um sentido metafórico, assim, torna “Alegria, Alegria uma espécie de manifesto precursor do movimento tropicalista. Em sua caminhada vadia, desprezando signos e convenções, ele deseja somente viver a aventura da liberdade sem limites.” (p.107)
Diferentemente das referências à bossa nova – ser ou não um movimento –, o tropicalismo foi por todos considerado um movimento da música popular brasileira, elogiado e também criticado.
Passos (1972), disse ser o tropicalismo uma manifestação da insatisfação daquela geração diante da realidade da nação e que teria breve duração. Comparando-o com a bossa nova, aponta o tropicalismo como oposto, que, objetivando inovar, foge de “uma espontânea e sincera conscientização dos seus propósitos. (...) o abuso das dissonâncias na obra de criação artística desses autores não encontrará eco, em absoluto, no aconchego da alma brasileira.” (p. 116)
Quando Gilberto Gil gravou “Aquele abraço” que foi recorde de vendagem de disco, esse pesquisador fez uma rápida análise da canção: “o autor dá mostras de estar evoluindo para o samba-afro e acompanhando como que o ritmo do partido alto.” (ibid. p. 116)
Para melhor entender o que está sendo falado e, também, possibilitar a comparação com “Domingo no Parque” citada anteriormente, destacarei a letra de “Aquele abraço”, gravada em 1969.

Aquele Abraço
“O Rio de Janeiro continua lindo / O Rio de Janeiro continua sendo / O Rio de Janeiro, fevereiro e março / Alô, alô Realengo, aquele abraço / Alô torcida do flamengo, aquele abraço. / Chacrinha continua balançando a pança / E buzinando a moça e comandando a massa / E continua dando as ordens do terreiro / Alô, Alô seu chacrinha, velho guerreiro, / Alô, alô, Terezinha, Rio de Janeiro / Alô, alô, seu Chacrinha, velho palhaço / Alô, alô, Terezinha, aquele abraço.
Alô moça da favela, aquele abraço / Todo mundo da Portela, aquele abraço / Todo mês de fevereiro, aquele passo / Alô Banda de Ipanema, aquele abraço / Meu caminho pelo mundo, eu mesmo traço / A Bahia já me deu, régua e compasso / Quem sabe de mim sou eu, aquele abraço / Pra você que me esqueceu, aquele abraço / Alô Rio de Janeiro, aquele abraço / Todo povo brasileiro, aquele abraço."

Fecho esse rápido resgate do polêmico movimento “Tropicalismo” com explicações de Caetano Veloso. “A bossa nova foi um acontecimento exclusivamente musical. O Tropicalismo é mais jornalístico. Não existe uma canção tropicalista como existe uma canção bossa nova. O tropicalismo eram notícias sobre atitudes tomadas em relação às formas várias, mais do que a criação de uma forma.” (O Globo, 22/11/97, Segundo Caderno, p. 4-5)
A letra e a importância da canção Tropicália para o autor: “essa canção sem nome justificou para mim (...) minha considerável dedicação à profissão que ainda me parecia provisória.” (Caetano, 1997, p. 187)
Ao longo da década de 70, os compositores que se destacaram traziam marcas da década anterior. Viveram buscando uma maior capacidade de resistência, já que alguns deles enfrentaram prisões e exílio, principalmente no ano de 68. Fizeram da música uma força.
A primeira música que rompe com a melancolia das lembranças do passado vivido e também com a melodia requintada foi “Águas de março” de Tom Jobim (1972), cuja letra, a seguir, “mostra uma melodia simples, pontuando ritmicamente as constatações mais concretas.” (Bahiana, Wisnik e Autran, 1979/1980, p. 18)

Águas de Março
“É pau, é pedra, é o fim do caminho / É um resto de toco, é um pouco sozinho / é um caco de vidro, é a vida é o sol / É a noite, é a morte, é um laço é o anzol / É peroba do campo, é o nó na madeira / Caingá candeia, é o matita pereira / É madeira de vento, tombo da ribanceira / é o mistério profundo, e o queira ou não queira / É o vento ventando, é o fim da ladeira, / É a viga, é o vão, festa da cumeeira / É a chuva chovendo, é a conversa ribeira / Das águas de março, é o fim da canseira / É o pé, é o chão, é a marcha estradeira, / Passarinho na mão, pedra de atiradeira / É uma ave no céu, é uma ave no chão, / É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão / É o fundo do poço, é o fim do caminho / No rosto o desgosto, é um pouco sozinho / É um estrepe, é um prego, é uma conta, é um conto / É um pingo pingando, é uma ponta, é um ponto / É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando / É a luz da manhã, é o tijolo chegando / É a lenha, é o dia, é o fim da picada / É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada / É o projeto da casa, é o corpo na cama / É o cano enguiçado é a lama, é a lama / É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã / É um resto de mato, na luz da manhã / São as águas de março fechando o verão / É a promessa de vida, no seu coração / É uma cobra, é um pau, é João, é José, / É um espinho na mão, é um corte no pé / São as águas de março fechando o verão / É a promessa de vida no teu coração / É pau, é pedra é o fim do caminho / É um resto de toco, é um pouco sozinho / É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã / É um Belo Horizonte, é a febre tercã.”

Ainda segundo Bahiana, Wisnik e Autran (1979/1980): “é o fim do caminho que encerra um ciclo e inicia outro, ciclo histórico e ciclo natural.” (p.18)
Segundo Severiano e Mello (1998), “ ‘Águas de Março’ possui na realidade uma estrutura sofisticada, extremamente trabalhada, que a distingue como uma das composições mais inteligentes da música brasileira” (p.170)
Assim, a canção de protesto dos anos 60, que previa realizações futuras, passa a fazer parte do passado e o presente começa a ser cantado. Mais uma demonstração dessa transformação se faz presente na letra abaixo, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos “Fé cega, faca amolada”.

Fé cega, faca amolada
“Agora não pergunto mais aonde vai a estrada / Agora não espero mais aquela madrugada / Vai ser vai ser vai ter de ser vai ser faca amolada / O brilho cego de paixão e fé faca amolada / Deixar a sua luz brilhar é ser muito tranqüilo / Deixar o seu amor crescer é ser muito tranqüilo / Brilhar brilhar acontecer brilhar faca amolada / Irmão irmã irmã irmão de fé faca amolada / Plantar o trigo e refazer o pão de cada dia / Beber o vinho e renascer na luz de todo dia / A fé a fé paixão e fé a fé faca amolada / O chão o chão o sal da terra o chão faca amolada / Deixar a sua luz brilhar no pão de todo dia / Deixar o seu amor crescer na luz de cada dia / Vai ser vai ser vai ter de ser vai ser muito tranqüilo / O brilho cego de paixão e fé faca amolada.”

Uma outra característica dessa década, segundo Bahiana (1979/1980), foi, além da grande quantidade de mulheres atuando como intérpretes, também, elas, começando a surgir como compositoras. Fatos como esse só ocorreram duas vezes: no início do século, com Chiquinha Gonzaga e, nos anos 50, com Dolores Duran. Na década de 70, dentre todas as compositoras que surgiram, rompendo com o espaço masculino da composição, a que mais se destacou foi Rita Lee. Essa afirmativa se dá com bases nos estudos de Bahiana (1979/1980). Diz ela:
“E, de todas, somente Rita Lee – que fica numa espécie de limbo, entre a formação universitária que teve e a vivência de rock, que foi intensa – se afirmou como performer, como intérprete das próprias obras, vencendo uma espécie de timidez, comum a todas.” ( p. 38)
Rita Lee preocupava-se em ser chamada de roqueira. Não aprovava o roqueiro radical, considerava-os fechados e preconceituosos. Afirmava que vivia no Brasil e que compunha como vivia.
Caetano (1997) diz que “o rock é fundamentalmente um gesto de recusa a toda sofisticação” (p.40-41).
Segundo Bahiana (1979/1980), o rock da década de 70 não tem sua origem na “Jovem Guarda”, pelo contrário, a repudia. Esse rock tem sua base importada. Tentava imitar a vigorosa, incisiva e criativa música de fora, inclusive como proposta de vida. Era uma forma de sonho, fuga ou ideal. Portanto, era mais que música, era uma proposta de romper ou, quem sabe, restaurar. Já em 1972, os grupos que seguiam essa forma de rock, de agir, de viver, vão se esvaziando.
Rita Lee desliga-se dos Mutantes, grupo ao qual pertencia. O rock fechado desaparece do cenário brasileiro. Mas a compositora persiste. Ela fez rock, faz música brasileira, como prefere afirmar, e, principalmente, abriu definitivamente o espaço feminino no mundo da composição.
Dando um salto na década, chego ao ano de 1979, período de lutas e esperanças por um país livre da repressão da ditadura militar. Luta em prol da anistia dos que daqui se foram e esperança do reencontro com aqueles que, mesmo distantes, não perderam suas raízes. Mais uma vez a música mostra estar presente no cenário brasileiro, compondo um hino: O Hino da Anistia, ou melhor, a canção que se tornou um marco da vitória política brasileira tem um destaque especial no livro “Furacão Elis” (1985). Isso porque foi o maior sucesso do show e do disco “Essa mulher”, de Elis Regina. Esse hino chama-se “O bêbado e a equilibrista” de Aldir Blanc e João Bosco.

O bêbado e a equilibrista
“Caía / A tarde feito um viaduto / E um bêbado trajando luto / Me lembrou Carlitos / A lua / Tal qual a dona de um bordel, / Pedia a cada estrela fria / Um brilho de aluguel / E nuvens / Lá no mata-borrão do céu / Chupavam manchas tarturadas / Que sufoco! / Louco. / O bêbado com chapéu côco / Fazia irreverências mil / Pra noite do Brasil, meu Brasil / Que sonha com a volta do irmão do Henfil / Com tanta gente que partiu / Num rabo de fuguete / Chora a nossa pátria, mãe gentil, / Choram Marias e Clarices / No solo do Brasil / Mas sei que uma dor assim pungente / Não há de ser inutilmente / A esperança dança / Na corda bamba de sombrinha / Em cada passo dessa linha / Pode se machucar / Azar! a esperança equilibrista / Sabe que o show de todo artista / Tem que cotinuar

Henfil, citado na letra dessa canção, relatou a Echeverria (1985) os efeitos que essa composição acarretou. Inicialmente a ele e, em seguida, ao país:
“Quando acabou a música, percebi que a anistia ía sair. Estávamos no começo da campanha, que mal juntava quinhentas pessoas na rua. (...) Eu percebi uma coisa: a ditadura, o governo vai perceber que por detrás dessa música não tem quem segure o momento da anistia. Escrevi para o meu irmão Betinho para ele se preparar. ‘Agora nós temos um hino e quem tem um hino faz uma revolução.’ (...) o comício passa das quinhentas para cinco mil pessoas. (...) acho que seis meses depois saiu a anistia.” (Henfil apud Echeverria, 1985, p. 217-218)
Quando Betinho voltou para o país, o Aeroporto de Congonhas foi tomado pela canção “O bêbado e a equilibrista”. Henfil levou o irmão, no mesmo dia, ao Anhembi, para assistir o show de Elis. Quando chegaram, a cantora interrompeu sua apresentação para anunciar que “um dos motivos daquela música, graças a Deus, estava presente. Já tinha voltado o irmão do Henfil.” (ibid., p. 218)
Também beneficiado pela lei da anistia (1979), dentre outros, retornou ao Brasil, Paulo Freire, educador que sustenta teoricamente a proposta de uma educação prazerosa, dialógica e crítica.
Hoje, 1998,ano em que inicio esse trabalho de pesquisa, já não fazem parte do presente cenário brasileiro: Elis, Henfil, Betinho e Paulo Freire. Personagens de áreas distintas que marcaram a história de um mesmo país: O Brasil.
É também, no corrente ano, que os jovens nascidos em 1979, ano da anistia, completam 19 anos, (inclusive Paulo Vinícius, meu filho, que me fez ouvir as músicas que os jovens cantam para outros ouvirem), idade máxima dos importantes 502 colaboradores desse trabalho de pesquisa.
Sem querer interromper esse recorte na história da música popular brasileira, deixo em aberto o período histórico vivido pelos jovens questionados, ou seja, décadas de 80 e 90.Serão eles, com a leitura que estão fazendo do mundo em que vivem, com respostas, escolhas e justificativas, os que completarão a história, no ano de 1999.
Prossigo, então, esse estudo, ciente de que minha proposta inicial de “Contar, Contar e Contar” era um rápido recorte na história da música popular brasileira, buscando a relação das letras das canções com o momento histórico em que foram compostas. Entretanto, me vi impossibilitada de sintetizar mais. À medida que lia os diversos autores e registrava feitos e fatos, fui percebendo o quanto a história da música brasileira, conta, conta e conta a história do país, e o quanto se faz importante, enquanto respaldo para o que proponho, neste trabalho de pesquisa. Dou, então, mais um passo, buscando sustentação teórica para a proposta da música como uma estratégia pacífica para a cura do ensurdecimento da escola. Esclareço, também, nesse momento, o que entendo por uma estratégia pacífica para curar o ensurdecimento da escola.
Estratégia pacífica é o que o professor resolve propor aos seus alunos, a partir de uma reflexão sua, independente de qual tenha sido a motivação, mas que de alguma maneira tenha tocado sua emoção. Assim, quando apresentar sua idéia aos estudantes, estará acreditando nela. Não estará copiando algo que deve ser seguido, como os conhecidos simulacros de currículos. Nem estará fazendo o que achou bonito o outro fazer. Estará, sim, confiante, esperançoso e bem humorado, carregado de elementos fundamentais para envolver o outro em um diálogo horizontal. Estará, portanto, trabalhando o currículo em seu sentido pleno, seja qual for o recurso usado. Eu proponho a música por acreditar que ela está impregnada de questões políticas e sociais, presentes no cotidiano de alunos e professores, temas fundamentais no processo ensino - aprendizagem.